Pandemia e guerra na Ucrânia estimulam reorganização de cadeias globais e países capazes de incentivar fabricação local com estímulos e infraestrutura saem na frente

Prestes a completar um ano amanhã, a guerra entre Ucrânia e Rússia acelerou os processos de reacomodação das cadeias globais de produção. O conflito fez com que termos como nearshoring e friendshoring, que servem para definir a produção em locais mais próximos e em países aliados, ganhassem força.

Quem tem se aproveitado, por diferentes razões, da realocação até o momento são países como México, Vietnã e Índia. Segundo analistas, essa reorganização das cadeias globais veio para ficar, mas a tendência é que seja longa, pois envolve a necessidade de investimento, processos regulatórios e buscas por fornecedores confiáveis.

E não é tão simples abrir mão de uma hora para outra das vantagens oferecidas por grandes mercados, como a China.

O movimento de encurtamento das cadeias já ocorria desde a escalada de tensões entre EUA e China, ainda no governo do presidente Donald Trump, sendo agravado pelas rupturas causadas pela pandemia e pela guerra.

Os eventos chamaram a atenção das empresas para a necessidade de cadeias mais curtas e resilientes e que levassem em conta não apenas os custos menores de produção, mas questões geopolíticas.

A vice-presidente e gerente de equipe de logística da consultoria Gartner, Kamala Raman, destaca que algumas empresas começam a praticar nearshoring em produtos de margem mais alta, quando os clientes estão dispostos a arcar com os custos adicionais que surgem. Kamala observa que México, Vietnã, Índia e Cingapura estão entre os beneficiários da reorganização.

— São países com capacidade de incentivar a fabricação local, com investimento em infraestrutura e apoio do governo a ingressantes no mercado. Os maiores desafios são a falta de alternativas adequadas à China, especialmente para componentes intermediários, onde as cadeias de suprimentos tendem a se concentrar em menos partes do mundo.

Nesse sentido, as empresas até podem mover a fabricação final dos produtos para a China, mas continuariam dependentes de componentes importados do país.

Mão de obra e qualificação

O México parece ter saído na frente na atração desses investimentos. A proximidade com os Estados Unidos, os acordos comerciais com americanos e canadenses e as redes de transporte de carga estabelecidas são alguns dos atrativos.

A Unilever anunciou este mês que construirá uma fábrica para produtos de beleza e cuidados pessoais em Monterrey, no estado de Nuevo Leon, que faz fronteira com os EUA. O empreendimento é parte de um investimento de US$ 400 milhões no país ems três anos.

A Mattel, fabricante das bonecas Barbie e dos Mega Bloks, ampliou sua unidade em Monterrey. Empresas de porte menor dos EUA têm buscado essa opção. A Ollin Plastics investiu US$ 10 milhões para instalar uma fábrica no polo industrial da mesma cidade, onde começou a produzir coolers para o mercado americano no ano passado.

A montadora alemã BMW anunciou investimento de US$ 870 milhões nos próximos três anos, a maior parte para a construção de um centro de produção de baterias elétricas em sua fábrica de San Luis Potosí.

O sócio da empresa de consultoria Kearney, com sede na Cidade do México, Omar Troncoso, afirma que as empresas que mais se beneficiam da mudança para o México são aquelas com muita mão de obra envolvida em seus processos produtivos:

— O México continua a ter mão de obra qualificada com preços muito competitivos. A maioria das empresas se localiza perto da fronteira, pois está dentro de um frete de US$ 500 a US$ 1.000 e a um dia de distância de seus armazéns do outro lado da fronteira.

Simplificação tributária

No entanto, os desafios para se aproveitar dessa demanda corporativa começam a aparecer. Troncoso destaca que a escassez de trabalhadores está aumentando nas cidades próximas da fronteira, o que aumenta a inflação de mão de obra, há preferência pela região Norte do país. A disponibilidade de energia também é um fator de alerta.

— O governo precisa resolver a questão trabalhista através de políticas internas de imigração. Trazer mão de obra do sul para o norte e treiná-los é crucial para continuar se beneficiando do nearshoring — disse Troncoso.

Kamala, da Gartner, avalia que para outros emergentes se aproveitarem do movimento são necessárias medidas como investimento em infraestrutura de transporte, simplificação tributária e suporte para que não só a linha de montagem final, mas também os fornecedores de componentes possam estar mais próximos.

— A diversificação das cadeias de suprimentos continuará e o ritmo será diferente em diferentes setores. Algumas empresas aproveitarão as políticas industriais para se mudar para novos países, enquanto outras descobrirão que transferir a manufatura sofisticada para fora da China é inviável, muito caro ou muito arriscado — disse.


Fonte: O GLOBO