IA é capaz de criar textos, imagens, códigos de programação, vídeos ou qualquer outra linguagem natural, aptidão cognitiva inerente à condição humana

O avanço da inteligência artificial (IA) ao longo da última década começou a atingir, nos últimos meses, um nível de maturação que promete alterar profundamente a forma como nós, seres humanos, desempenhamos atividades cotidianas, interagimos com familiares e amigos, trabalhamos, agimos em sociedade e até mesmo como votamos, com potenciais riscos ainda desconhecidos.

A IA já está presente no dia a dia de boa parte da população global — de uma rede social que recomenda conteúdo personalizado até uma simples mensagem digitada em um app que sofre a influência de um corretor automático, por exemplo. Mas a Humanidade começa a experimentar agora uma nova era da IA, capaz de cruzar fronteiras há pouco tempo consideradas estritamente humanas, como as da linguagem e da criatividade.

Trata-se da inteligência artificial generativa, termo que descreve o campo da IA capaz de criar textos, imagens, códigos de programação, vídeos ou qualquer outra linguagem natural, aptidão cognitiva inerente à condição humana. Para especialistas, trata-se de salto tecnológico muito maior do que o que vimos até agora, com consequências profundas e imprevisíveis.

Esse tipo de IA, que ensejou uma nova corrida no Vale do Silício, nos EUA — com investidores aportando US$ 1,37 bilhão (quase R$ 7 bilhões) em ao menos 78 startups do ramo só no ano passado —, popularizou-se por meio de interfaces intuitivas, acessíveis a qualquer mortal na internet, como Midjourney, ChatGPT e DALL-E.

São ferramentas que se relacionam com o usuário a partir de conversas, nas quais é possível pedir que elas criem tudo o que um humano pode fazer, de artigos acadêmicos inteiros a códigos de programação, passando por notícias e imagens hiper-realistas (como as que ilustram esta reportagem), capazes de turbinar a já problemática indústria de fake news.

Os primeiros exemplos do que essa nova geração de IA é capaz têm assustado muita gente, de técnicos a acadêmicos, de autoridades a pessoas comuns, tanto pelas oportunidades que se abrem quanto por seus riscos. Todo esse potencial já começa a mexer com a vida das pessoas e com a economia, embora especialistas afirmem que ainda estejamos longe de identificar todas as suas possibilidades.

Eles alertam, inclusive, que, a depender do modo como essas ferramentas são disponibilizadas e utilizadas, o impacto da IA generativa pode ter diferentes contornos. O equilíbrio desses efeitos depende do estabelecimento de padrões éticos e de uma regulação, o que não houve, por exemplo, com as redes sociais, apontam especialistas.

Com base nessa preocupação, uma carta divulgada na semana passada pedindo uma pausa no desenvolvimento de novas gerações de IA foi assinada por mais de mil acadêmicos, como o historiador Yuval Harari, e executivos do setor, como o bilionário Elon Musk, indicando que nem os criadores de máquinas inteligentes conseguem “entender, prever ou controlar de forma confiável” o potencial delas.

Voto em meio a ‘vertigem’ de desinformação

Os especialistas explicam que esses sistemas se baseiam em grandes modelos de linguagem, algoritmos treinados com larga quantidade de dados. Podem não só processar dados, mas aprender com eles para prever, por exemplo, a próxima palavra ou tarefa a ser tomada com base no contexto anterior.

Somam-se a isso o recente ganho de escala e o alcance franqueado na internet. Embora as próprias plataformas destaquem que seus sistemas são passíveis de erros grosseiros e até desinformação, seu controle é quase nulo sobre o conteúdo gerado.

Já são muitas as demonstrações de que essas ferramentas têm condições de alimentar a indústria de notícias falsas e volumes muito maiores que os atuais. Na semana passada, o Midjourney suspendeu seus testes gratuitos depois que imagens falsas do Papa usando casaco esportivo viralizaram nas redes e provocaram excesso de demanda na plataforma.

Também tomaram as redes uma imagem falsa de uma cena na qual o ex-presidente dos EUA Donald Trump é preso e um áudio atribuído ao atual ocupante da Casa Branca, Joe Biden, gerado por uma ferramenta de clonagem de voz.

Na esfera política, as IAs generativas são perturbadoras porque potencializam deepfakes, conteúdos falsos com contornos realistas produzidos em poucos minutos e capazes de convencer multidões. As pessoas afetadas são levadas a tomar decisões, como na hora de votar, sob uma “vertigem”, como define Fernanda Bruno, coordenadora do MediaLab da UFRJ:

— Viveremos num mundo onde não vão importar o verdadeiro e o falso. Entra-se na zona do imprevisível, do imponderável, com o qual atores e instrumentos institucionais e políticos não dão conta de lidar — afirma Fernanda.

É um risco para a democracia, diz João Victor Archegas, pesquisador do ITS Rio:

— A democracia é uma criação de consensos e acordos a partir da linguagem, que é como constituímos nossa realidade. A partir do momento em que passa a dominar a linguagem, a IA tem a chave para acessar e modificar nossa realidade. Já está criando um simulacro pela linguagem visual. É altamente preocupante.

Robô compositor e ‘blogueirinho’

Sabe aquela playlist favorita que o algoritmo do streaming criou para você a partir dos seus gostos, que ele conhece como ninguém? Pode não render direito autoral para ninguém se todas as canções forem compostas por uma máquina que sabe muito bem o que você quer ouvir. E o seu influenciador digital favorito? Será que é de carne e osso?

O cinema, a literatura, a fotografia, a música, a arquitetura e as artes plásticas são campos da cultura e da subjetividade que podem sofrer grandes transformações com as máquinas capazes de criar objetos culturais a partir de estímulos específicos e não aleatórios.

— A produção de conteúdo sintético passa a ter um papel relevante. Até pouco tempo, o algoritmo organizava as músicas no app de streaming. Hoje, a música que ouvimos talvez já possa ter sido criada pelo próprio algoritmo. Uma mudança fundamental de paradigma, sem dúvida — avalia Arthur Igreja, palestrante e especialista em inovação.

Mas isso não quer dizer que os trabalhadores da indústria criativa irão desaparecer, embora essas novas tecnologias tragam dilemas éticos referentes à propriedade intelectual. Afinal, o que alimenta o repertório das máquinas é o que foi criado por alguém.

— Modelos de linguagem criam variações a partir da união de muitos textos e geram uma criatividade no sentido computacional, mas não uma criatividade intencional que pensa em si e pensa o público — afirma Thiago Tavares, professor do curso de Ciência da Computação do Insper.

Na indústria da moda, um estudo da consultoria McKinsey estima que, nos próximos três a cinco anos, a IA generativa pode adicionar US$ 150 bilhões aos lucros operacionais dos setores de vestuário, moda e luxo, do codesign à aceleração dos processos de desenvolvimento de conteúdo.

‘Intimidade artificial’ que afeta a sociabilidade

Não faltam estudos sobre o impacto dos algoritmos das redes sociais sobre a saúde mental e a forma como nos relacionamos em sociedade. Plataformas voltadas para imagens, como Instagram e TikTok, que já permitem o uso de filtros baseados em IA em escala massiva, podem levar a distúrbios envolvendo a percepção das pessoas sobre sua própria imagem. Em muitas dessas ferramentas, é a máquina quem define como um rosto deve ser “corrigido”, em vez de responder a preferências do usuário.

Há ainda outros desafios psicológicos e cognitivos diante da interação cada vez maior entre humano e máquina, por meio da linguagem. A história do personagem de Joaquin Phoenix no filme “Ela”, apaixonado pela voz e as palavras de uma robô virtual, fica mais próxima da realidade.

— As pessoas utilizam cada vez mais máquinas e, com isso, podem projetar uma agência que a máquina não têm, ao que chamamos de “intimidade artificial” — explica Diogo Cortiz, professor da PUC-SP. — Você constrói intimidade com a máquina, mas a recíproca não é verdadeira, porque a máquina não tem intimidade com você. E isso pode trazer diversas consequências que a gente ainda não conhece.


Fonte: O GLOBO