Especialistas defendem via diplomática, mas acreditam que Brasil perdeu a oportunidade de exercer seu papel como mediador da crise

Ao receber Nicolás Maduro em visita oficial na segunda-feira, Luiz Inácio Lula da Silva promoveu uma nova guinada na política externa brasileira, optando pela reabilitação do líder venezuelano, depois que as gestões Temer e Bolsonaro tentaram isolar o vizinho — sem sucesso. Entretanto, especialistas ouvidos pelo GLOBO indicam que o brasileiro pode ter errado no tom ao passar uma imagem condescendente com Caracas, que sofre com a falta de eleições livres, problemas econômicos e milhões de refugiados pelo mundo.

Para os analistas, Lula repetiu um comportamento já adotado na crítica a europeus e americanos na guerra na Ucrânia — ao tentar se mostrar isento e se habilitar como mediador, o presidente brasileiro disse que eles eram responsáveis pelo alongamento do conflito, o que atraiu respostas da Casa Branca e do bloco europeu. Desta vez, dizem, os problemas seriam as fortes críticas aos EUA pelo embargo econômico ao país vizinho, afirmando que as sanções econômicas são "pior do que uma guerra", e ao chamar de "narrativas" as acusações de que a Venezuela não vive sob um regime democrático.

Para Juanita Goebertus, diretora para as Américas da Human Rights Watch, com essas declarações, Lula "lamentavelmente perdeu a oportunidade de exercer seu papel como mediador da crise venezuelana".

— Todos os esforços diplomáticos para defender o Estado de Direito, os direitos humanos, de recuperar relações bilaterais, são bem-vindos. Mas, em nenhum cenário as violações de direitos humanos e os crimes de lesa-Humanidade cometidos por Maduro e documentados por uma Missão de Investigação da ONU são narrativas construídas, mas uma realidade — pontua. — Negar essa realidade na Venezuela seria quase compactuar com esses crimes.

Durante o encontro, Lula também afirmou que era difícil "conceber" que o Brasil tenha ficado tantos anos sem diálogo com a Venezuela e que achava a coisa "mais absurda do mundo" o não reconhecimento de Maduro como presidente por aqueles que "defendem a democracia". 

O presidente brasileiro se referia ao dirigente opositor Juan Guaidó, que chegou a ser reconhecido como presidente interino pelos EUA e mais 50 países, incluindo o Brasil durante o governo de Bolsonaro. Mas, após uma tentativa fracassada de tirar Maduro do poder a qualquer custo, o opositor acabou perdendo legitimidade interna e externamente.

Também afirmou que o "preconceito contra a Venezuela" ainda é grande e chamou de "narrativas" as acusações de ditadura no país.

— Lula tem razão ao dizer que há muito preconceito em relação à Venezuela. Mas também deveria admitir que há muitas verdades incômodas: graves violações aos direitos humanos, eleições fraudulentas e crescente autoritarismo para citar apenas algumas — afirma Daniel Zovatto, do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (Idea). 

— Ignora completamente a questão central da violação dos direitos humanos e a investigação atualmente em andamento pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade.

A jornalista venezuelana Luz Mely Reyes acredita que Lula fez um "desserviço à democracia no continente" com o tom de seu discurso:

— Em um país onde todos se uniram para tentar salvar a democracia diante do crescimento do populismo, me pergunto como Lula pode dar um aval a governo que tem tantos sinais de violação de direitos humanos.

'Desgaste desnecessário'

Ao lado de Maduro, durante declaração conjunta à imprensa, Lula ainda fez fortes críticas aos Estados Unidos pelo embargo econômico ao país vizinho, afirmando que as sanções econômicas são "pior do que uma guerra". "Maduro não tem dólar para pagar suas importações. É culpa dele? Não. É culpa dos EUA, que fizeram um bloqueio extremamente exagerado", afirmou o presidente.

Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, dizer que as sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela são a principal e única razão pela crise econômica do país é uma leitura "enviesada e simplista".

— É basicamente a repetição da narrativa oficial, que é claramente incorreta, já que as sanções tiveram início em 2016, quando a Venezuela já se encontrava em uma situação muito complicada economicamente falando.

Tiziano Breda, especialista em América Latina para o Instituto Affari Internacional (IAI), destaca ainda o problema da retórica do presidente brasileiro, mesmo erro cometido em relação à guerra na Ucrânia:

— Lula teve, neste caso, o mesmo problema que na situação na Ucrânia. Não é tanto de falta de compreensão da problemática ou de ausência de boas intenções em tentar promover uma aproximação diplomática, mas com sua retórica, que às vezes pode evidenciar sua posição mais próxima a uma das partes, em vez da posição neutra que ele tenta passar. Ou seja, não é tanto um problema de fundo, mas comunicacional.

Os analistas concordam, no entanto, que isolar Maduro foi um erro estratégico e aplaudem a tentativa de Lula de tentar resolver a crise de maneira diplomática. Maduro não vinha ao país desde 2015, quando participou da posse do segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, que sofreu impeachment no ano seguinte.

Sua presença no Brasil não era permitida desde agosto de 2019, quando uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro proibia o ingresso no país do líder venezuelano e de outras autoridades do vizinho latino-americano. A estratégia de isolar Maduro, no entanto, não foi eficaz para resolver a crise no país.

— Lula acertou ao fazer o convite e com sua aproximação diplomática, já que manter Maduro isolado mostrou-se muito mais danoso. Ele representa uma esquerda mais moderada e sensata e tem muita influência junto a Maduro — diz David Smilde, especialista em Venezuela na Universidade de Tulane, em Nova Orleans. — Mas de fato não foi um discurso forte e crítico como muitos gostariam. Por esse motivo, não acho que seria um grande negociador, porque há uma desconfiança sobre ele. Acredito que pode ter uma influência como um aliado mais moderado que pode aconselhar Maduro.

Para Stuenkel, Lula sofre mais um desgaste desnecessário nas questões de política externa.

— Tenho acompanhado há anos os desafios que o Brasil apresenta na fronteira, e não ter uma relação diplomática funcional com a Venezuela atrapalhou o país. Ter uma embaixada é fundamental para acompanhar o que está acontecendo — afirma o professor da FGV. — Esse passo pragmático não quer dizer que o Brasil esteja alinhado ideologicamente com a Venezuela. Mas do jeito que aconteceu, com essa postura tão pró Maduro, foi um desgaste desnecessário.

Juanita Goebertus, diretora para as Américas da Human Rights Watch, concorda:

— O Brasil está em um lugar muito importante de liderança regional, o que dá a ele todos os elementos para ter um papel negociador. Por isso foram tão infelizes essas declarações.


Fonte: O GLOBO