Com 99% dos votos apurados, nenhum candidato ultrapassou os 50% necessários para liquidar o pleito no primeiro turno; resultado foi melhor que o previsto para presidente

A Turquia terá um inédito e disputado segundo turno em 28 de maio, após o presidente Recep Tayyip Erdogan não conseguir os 50% necessários para se reeleger na eleição de domingo. O desafio imposto pelo opositor Kemal Kiliçdaroglu é o maior enfrentado pelo mandatário em suas duas décadas no poder, em uma eleição equiparada a um plebiscito sobre sua guinada autoritária, conservadora e uma política econômica que causa inflação galopante.

O resultado ainda assim é melhor do que o esperado por Erdogan, que desponta como favorito, após manter também a maioria no Parlamento. Pesquisas nas últimas semanas indicavam que o mandatário poderia perder ainda no primeiro turno, mas, com 99% das urnas apuradas, lidera com 49,51% dos votos, contra 44,88% de Kiliçdaroglu à frente de uma aliança de seis siglas oposicionistas. 

O presidente se saiu bem no interior e nas províncias do Mar Negro, enquanto seu desafiante teve como bastiões as grandes cidades como Ancara e Istambul.

Após a expectativa de uma definição da disputa ainda no domingo provar-se frustrada, a apuração caminhou a passos lentos após passar de 95% das urnas contabilizadas. Sinan Ogan, dissidente do partido ultranacionalista Movimento Nacionalista, ficou com 5,17% com uma plataforma cujo ponto principal era a expulsão dos refugiados acolhidos por seu país.

O quarto concorrente, Muharrem Ince, desistiu da candidatura na quinta, mas ainda assim recebeu cerca de 0,4% dos votos. A participação foi de 88%, segundo Ahmet Yener, chefe da autoridade eleitoral do país.

A Turquia não tem experiência com segundos turnos, já que a eleição popular do presidente só ocorreu em duas ocasiões: 2014 e 2018. Em ambas, Erdogan teve 52% dos votos na primeira rodada – antes, ocupou o cargo de premier de 2003 a 2014, sendo eleito após vitória de seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco) nas votações.

Em um discurso diante de seus eleitores na madrugada, Erdogan ainda não havia descartado a possibilidade de vencer sem uma nova rodada, acusando a oposição de "tentar enganar a opinião pública" e parabenizando os turcos por sua "maturidade democrática".

— O fato de que o resultado das eleições ainda não foi finalizado não diminui o fato de que a escolha da nossa nação está claramente a nosso favor — disse o presidente. — Nós acreditamos que eu terminarei com mais de 50% dos votos no primeiro turno — completou ele.

Esperança da oposição

Kiliçdaroglu, por sua vez, disse que a aliança governamental "bloqueava a vontade popular com a objeção de atas eleitorais" quando os votos de cerca de 10 milhões dos 64 milhões de turcos aptos a participar do pleito ainda precisavam ser contabilizados. Ele concorreu prometendo "mudar o destino" da Turquia, pôr o país novamente nos trilhos democráticos e adotar uma política econômica mais ortodoxa:

— Apesar de todas suas mentiras e ataques, Erdogan não teve o resultado desejado. Ninguém deve ficar entusiasmado com isso ser um negócio selado. — disse o candidato da sigla centro-esquerdista Partido Republicano do Povo (CHP, na sigla em turco).— Nós definitivamente, definitivamente, vamos vencer essa eleição no segundo turno. Todos verão. Os resultados preliminares mostram que Erdogan não teve a confiança pública de que precisava. A necessidade de mudança na sociedade excede 50%.

Houve também eleições legislativas, em que os resultados preliminares mostram que a aliança do governista AKP deve se manter a principal força Parlamento de 600 assentos, cujo poder foi reduzido após um referendo em 2017. O cenário é em parte consequência da divisão entre a esquerda, mas pior do que o esperado para o CHP.

Os governistas com sua chamada Aliança do Povo tiveram 49,46% dos votos, que lhe renderão 322 assentos na Casa. O carro-chefe da aliança foi o AKH, que sozinho teve 35,58% e ocupará 267 assentos. O aliado Partido de Ação Nacionalista (MHP) obteve 10,07%, que renderá 50 assentos. O resto da parceria é por outras siglas minoritárias.

Já o grupo de Kiliçdaroglu, a Aliança da Nação, terá 213 assentos, após conseguir 35,02% dos votos — o CHP sozinho teve 25,35%, que se traduzirão em 169 parlamentares.

Os 65 assentos restantes no Parlamento ficarão com a Aliança do Trabalho e da Liberdade, que apoiou o principal rival de Erdogan na disputa presidencial. O grupo de esquerda inclui o pró-curdo Partido Democrático dos Povos (HDP), que concorreu sob a alcunha de Partido Verde dos Povos devido a um imbróglio legal.

As horas iniciais da apuração foram marcadas por incerteza e desinformação, com vários aliados de Kiliçdaroglu indo a público questionar a lisura e o comprometimento da Anadolu, agência de notícias estatal que divulgava a apuração em tempo real. 

O veículo dava uma ampla vantagem para Erdogan, algo já esperado visto que os votos dos bastiões do presidente foram contabilizados primeiro — a margem, contudo, foi reduzindo conforme a contagem prosseguia.

Opositores como o prefeito de Istambul, Ekrem Imamoglu, e de Ancara, Mansur Yavas — ambos candidatos a vice de Kiliçdaroglu — foram a público encorajar seus apoiadores e questionar a condução do processo. Em uma tentativa de acalmar as tensões, a autoridade eleitoral do país afirmou que "não há disrupções ou atrasos" ao se pronunciar à noite durante algumas entrevistas coletivas.

Ao longo da noite, a contagem oficial sempre esteve ao redor de 20% atrás dos números da Anadolu, que descreve em seu site a conta de "urnas eleitorais abertas". Kiliçdaroglu, contudo, apresentou objeções e pediu para que a autoridade eleitoral "aja responsavelmente".

— Nas urnas, quando os nossos votos estão altos, eles bloqueiam o sistema com objeções repetidas. Há objeções persistentes, por exemplo, de 200 urnas em Ancara e 783 urnas em Istambul. Há urnas em que os votos foram contestados seis, onze vezes. O que vocês bloqueiam é o desejo da Turquia — disse Kiliçdaroglu. — Parem com essa administração de percepção: isso é sério. Deixem os votos entrar. Deixem o resultado ser anunciado o mais rapidamente possível.

A migração dos votos de Ogan pode ser fundamental para determinar se o país terá ou não um novo presidente, mas ele afirmou que ainda não sabe quem apoiará, prometendo uma decisão nos próximos dias. Segundo ele, suas demandas "inegociáveis" incluem a "luta contra o terrorismo" e a expulsão dos "13 milhões de refugiados".

A cifra de asilados no país, sobrecarregado pela década de guerra civil síria e pela situação no Iraque, é inflada, com o número real ficando ao redor de 4 milhões. A retórica xenofóbica, contudo, é força que mobiliza mais os conservadores.

Ascensão e queda

O resultado do pleito é fundamental para um país que ocupa uma posição geopolítica estratégica como membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e uma das 20 maiores economias do planeta. Domesticamente, contudo, o tema central é a economia.

Em seus primeiros anos no poder, Erdogan prometia consolidar a Turquia como potência regional no Oriente Médio, além de explorar seu potencial de entrar na União Europeia devido à sua posição geográfica — processo que chegou a ser iniciado, mas hoje está paralisado.

Por alguns anos, o projeto foi bem-sucedido, conforme o presidente implementava as reformas desenvolvidas pelo Fundo Monetário Internacional para resolver décadas de inflação descontrolada.

Com um período de alto crescimento entre 2006 e 2017, a renda per capita turca, por exemplo, cresceu de US$ 4,7 mil no ano em que Erdogan assumiu para US$ 12,5 mil em 2013. O bom momento ajudou a impulsionar a popularidade do presidente, com sua linha conservadora que reforça os valores tradicionais do islamismo, afastando do secularismo dominante desde que o país foi refundado após a Segunda Guerra Mundial.

Desde então, contudo, Erdogan passou a gerenciar de perto a economia, com intervenções exageradas. A lira, por exemplo, acumula hoje forte desvalorização frente ao dólar e chegou a seu nível mais baixo logo após os terremotos que atingiram o país em fevereiro deste ano. A inflação anual excedeu 80% em 2022, aumentando drasticamente o custo de vida no país.

Até 2010, Erdogan tentou manter um equilíbrio entre a identidade liberal moderna turca e a conservadora religiosa — mas, desde então, aposta cada vez mais na polarização e no conservadorismo, que caminha ao lado de uma guinada autoritária que piorou após uma tentativa de golpe de Estado por setores do Exército em 2016. Há dezenas de milhares de presos políticos e o controle do governo sob grande parte da imprensa, por exemplo.

Em 2018, uma alteração no regime de governo derrubou o parlamentarismo e estabeleceu um presidencialismo que favorecia a concentração de poder nas mãos de um governante. O relatório de 2022 da organização Human Rights Watch determinou que o atual regime turco retrocedeu os direitos humanos no país em décadas.

Ao mesmo tempo, afastou-se do Ocidente aproximando-se cada vez mais do Oriente Médio e da Rússia, de quem depende para aumentar sua capacidade nuclear. Também vetou a entrada da Suécia na Otan neste ano, apesar de ter dado sinal verde para a Finlândia, com quem tem relações um pouco melhores.

Os terremotos deste ano deram um novo tom à disputa, com os críticos afirmando que a resposta oficial foi demasiadamente lenta e ruim — e impulsionando indagações se a ênfase de Erdogan na construção civil para impulsionar a economia produziu obras incompatíveis com a instabilidade sísmica no país. Os abalos também dificultaram a logística eleitoral, pois muitos cidadãos que precisaram abandonar suas casas enfrentaram obstáculos adicionais para conseguirem votar.


Fonte: O GLOBO