Rússia e Ucrânia trocaram acusações sobre a autoria do ataque; 16 mil pessoas estão na chamada 'zona de risco'

A barragem de Nova Kakhova, no sul da Ucrânia, foi parcialmente destruída nesta terça-feira, causando vasta inundação às vésperas de uma aguardada contraofensiva ucraniana. Russos e ucranianos trocam acusações sobre o incidente, que ameaça o abastecimento de água para a usina nuclear de Zaporíjia e representa um agravamento da guerra que já dura mais de 15 meses.

Ainda não se sabe de quem é a responsabilidade ou qual foi a causa do ataque contra a barragem de 18 km³, que compõe a hidrelétrica homônima, às margens do rio Dniéper, e sob controle russo desde o ano passado. Segundo o Ministério do Interior ucraniano, o incidente causou inundações em 24 vilarejos, mas a zona de risco engloba cerca de 80, além de partes da cidade de Kherson. Há evacuações em curso.

Pelo Twitter, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, culpou "terroristas russos" e afirmou se tratar de um crime de guerra, com autoridades do seu alto escalão relatando explosões ordenadas pelo Kremlin. Mais tarde, afirmou que o mundo "deve reagir" ao incidente que caracterizou como "o maior desastre ambiental causado pelo homem em décadas na Europa":

— É fisicamente impossível explodir [a barragem de Kakhova] de fora (...). Os ocupantes russos puseram minas e a explodiram — disse Zelensky, que convocou uma reunião de emergência do seu Conselho de Segurança Nacional. — A Rússia detonou uma bomba de destruição ambiental maciça. O maior desastre ambiental causado pelo homem na Europa em décadas.

Já o porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, afirmou se tratar de uma "sabotagem" com possíveis "consequências ambientais severas". 

Em meio a indícios de que a contraofensiva de Kiev já pode ter começado após a intensificação dos confrontos nos últimos dias, ele afirmou que "toda a responsabilidade pelas consequência do ato deve recair sobre o regime de Kiev". Moscou também declarou estado de emergência na região.

A maior parte dos especialistas crê que os esforços ucranianos para retomar o território ocupado seriam centrados na margem oriental do rio, mas os danos maiores causados pela destruição da represa ficam no lado oposto. A destruição pode atrapalhar os planos de ambos lados do confronto, que eclodiu em 24 de fevereiro do ano passado.

De acordo com o chefe da Ukhrydronergo, a empresa responsável pela hidrelétrica que antes da guerra abastecia mais de 3 milhões de pessoas, houve uma explosão às 2h50 (hora local) na sala de comando da planta. A usina, afirmou a companhia, "não poderá ser reparada".

Nova Khakova era motivo de preocupação contínua desde que a guerra começou, com Moscou e Kiev acusando-se mutuamente em outros momentos de atacá-la. Com 30 metros de altura e 3,2 km de comprimento, a barragem foi construída em 1956 e é fundamental para o abastecimento de água potável e para a agricultura, além do resfriamento do complexo nuclear de Zaporíjia, o maior da Europa.

Os ucranianos afirmaram que o episódio aumenta drasticamente o risco de uma "catástrofe nuclear" em Zaporíjia, sob controle russo desde maio de 2022, mas Moscou e a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) negam que haja risco imediato. Pelo Twitter, o braço da ONU afirmou que seus especialistas in loco monitoram de perto a situação.

A Energoatom, a operadora nuclear ucraniana, disse que o nível de água na reserva estava caindo, mas que no setor responsável pelo resfriamento da usina ele estava em 16,6 metros. O cenário, disse a organização, "é suficiente para as necessidades" da central atômica, cujos seis reatores já estavam previamente desligados e, portanto, precisam de menos resfriamento.

Outra função-chave da reserva é abastecer um canal que leva água para a Península da Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014, e cuja devolução é posta por Kiev como condição para negociações. Segundo Peskov, uma das razões pelas quais os ucranianos podem ter explodido a reserva foi para privar a região de água. O Comitê de Investigação da Rússia, similar à Polícia Federal, afirmou que lançou uma investigação criminal.

Desde a madrugada, circulam vários vídeos nas redes sociais mostrando intensas explosões ao redor da barragem — outros, inclusive um postado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, retratam o alagamento. De acordo com o comandante militar ucraniano em Kherson, Oleksander Prokudin, várias localidades ficaram "completa ou parcialmente" inundadas.

"Quase 16 mil pessoas estão na zona crítica, na margem direita da região de Kherson", afirmou Prokudin nas redes sociais, alertando que a situação deveria ficar crítica por volta do fim da manhã, no horário local.

O governador de Kherson nomeado pela Rússia, Andrey Alekseyenko, afirmou que nenhuma grande cidade está sob ameaça de inundação após o aumento de entre "dois e quatro metros" do nível da água. Já Vladimir Leontiev, prefeito indicado por Moscou para Nova Kakhova, disse que forças ucranianas atacaram a barragem e causaram seu colapso parcial, anunciando a evacuação de cerca de 300 casas em vilarejos vizinhos.

A Ucrânia pediu uma reunião de emergência no Conselho de Segurança da ONU para discutir o ataque, disse em uma nota sua Chancelaria. Em uma audiência paralela na Corte Internacional de Justiça (CIJ), que apura uma acusação ucraniana de que os russos por anos respaldaram rebeldes separatistas no leste ucraniano, Kiev chamou o país vizinho de "Estado terrorista".

— As ações da Rússia são as ações de um Estado terrorista, de um agressor — disse o representante de Kiev, Anton Korinevich, no tribunal da ONU, que julga disputas entre Estados.

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, disse que a Rússia prestará contas pela destruição de uma infraestrutura civil, o que ele também classificou de "crime de guerra". A União Europeia condena o ataque "nos termos mais fortes possíveis", disse seu principal diplomata, Josep Borrell, afirmando que o apoio do grupo à Ucrânia é inabalável e que o incidente pode ser uma violação da lei internacional, pela qual "todos os comandantes, realizadores e cúmplices serão responsáveis.

O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, criticou a "brutalidade" da Rússia após a destruição da barragem hidrelétrica. O Reino Unido, por sua vez, disse que o episódio é "abjeto" e um "crime de guerra".

Independentemente de quem seja a autoria, ataques contra infraestruturas civis, mesmo durante conflitos, são crimes de guerra pelas convenções de Genebra, que ganharam forma após a Segunda Guerra Mundial e definiram salvaguardas humanitárias em conflitos. Por elas, deve haver distinção entre “objetos civis e objetos militares”, e ataques contra o primeiro grupo são proibidos.

O episódio é o maior até agora em que a água é usada como arma de guerra no confronto russo-ucraniano, mas não o único. Segundo um estudo publicado em março na revista Nature Sustainability, só nos três primeiros meses do conflito, foram 64 casos de impacto no setor hídrico — 49 concretizados e outros 15 em potencial.

Os russos fazem bombardeios frequentes contra infraestruturas que garantem o abastecimento de água ao país vizinho, por exemplo. Quando a Rússia ocupou ilegalmente a Crimeia, em 2014, a Ucrânia construiu uma represa no Canal do Norte da península para cortar o fluxo de água para os invasores. Uma das primeiras ações russas após a eclosão da guerra, em fevereiro do ano passado, foi implodi-la.

Os danos à barragem aconteceram após um dia marcado por informações contraditórias: a Ucrânia reivindicou avanços ao redor da cidade de Bakhmut (leste) e a Rússia anunciou que impediu um ataque em larga escala em Donetsk.

A vice-ministra ucraniana da Defesa, Ganna Maliar, disse que Bakhmut permanece como o "epicentro das hostilidades". "Estamos avançando em um front bastante amplo", destacou.

Maliar também admitiu que as tropas ucranianas estão "executando ações ofensivas" em alguns pontos do front, mas sem revelar detalhes.

Silêncio sobre a contraofensiva

A Ucrânia prepara há vários meses uma contraofensiva para tentar recuperar os territórios perdidos para a Rússia desde o início da invasão, mas o governo destacou que não anunciaria o local nem a data de início da operação.

O conflito ficou ainda mais tenso nas últimas semanas, com o aumento dos ataques nos dois lados da fronteira com a Rússia.

Os analistas militares acreditam que as forças ucranianas pretendem testar as defesas da Rússia para encontrar seus pontos fracos antes do início de uma contraofensiva em larga escala.

Na segunda-feira, o ministério da Defesa da Rússia anunciou que impediu, no domingo (4), uma "grande ofensiva" em cinco pontos do sul da região de Donetsk.

A pasta afirmou que suas tropas mataram "1.500 soldados" ucranianos e destruíram mais de 100 veículos blindados.

Porém, o fundador do grupo paramilitar russo Wagner, Yevgueni Prigozhin, chamou as versões de Moscou de "fantasias" e disse que as forças ucranianas avançaram na cidade de Bakhmut, que Moscou afirma ter conquistado em maio.

O polêmico empresário mantém uma disputa pública com o exército e já acusou os comandantes militares pela falta de munição para as tropas do grupo Wagner.

Zelensky agradeceu às tropas pelos avanços nas proximidades de Bakhmut e chamou a reação de Moscou de "histérica". "O inimigo sabe que a Ucrânia vai vencer", declarou.


Fonte: O GLOBO