Dados da Pnad Educação mostram que 34% dos brasileiros de 0 a 3 anos não estão matriculados porque suas famílias não conseguiram atendimento para eles

Rafaela Lima, de 25 anos, está frustrada e preocupada. O dinheiro não está sobrando para a moradora de Formiga, em Minas Gerais, mas ela vai precisar abandonar o emprego em um supermercado da cidade. O problema é que não há quem possa ficar com Alice, sua filha mais nova, de 2 anos, enquanto ela está no trabalho, nem vaga na creche, uma realidade que piorou no país nos últimos anos.

— Têm sido dias frustrantes e de incertezas. Não sei como vai ser porque já não está fácil com o serviço. Sem ele, vai ser bem pior — afirma a mãe.

De todas as crianças de 0 a 3 anos do país, 7,2 milhões estão fora da creche. Dessas, 2,5 milhões (34%) não estão matriculadas porque seus pais não conseguiram vaga. Outros 4,1 milhões (57%) não frequentam o ambiente escolar porque seus pais não querem — a etapa não é obrigatória. Os dados são de 2022, levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Educação, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Além de dificultar ou até impedir que mulheres trabalhem fora, a falta de vaga em creches de boa qualidade — especialmente para crianças cujos pais têm baixa escolaridade — gera enorme impacto no desenvolvimento educacional infantil, apontam especialistas.

Carolina Albuquerque, de 23 anos, por exemplo, está preocupada com o desenvolvimento intelectual de seu filho. O menino de 2 anos fala pouco, e ela acredita que o estímulo adequado de profissionais da educação podem ajudá-lo.

— Meu filho está numa fila de espera, e a escola diz que estão aguardando a prefeitura liberar cinco salas hoje vazias. Já estamos em junho, e ele sem vaga — diz a jovem.

De acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), que tem força de lei, o Brasil deveria atingir, em 2024, 50% das crianças entre 0 e 3 anos na creche. Atualmente, esse patamar está em 36%.

Para piorar esse cenário, o Brasil já teve — antes da pandemia — uma demanda por vagas menor. Em 2019, eram 2,3 milhões de crianças de 0 a 3 anos que não estavam na escola porque não havia vaga para elas. Esse número é 200 mil abaixo do que o dado de 2022.

De acordo com o Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (Simec) Obras, do Ministério da Educação, o país tem atualmente mais de 700 construções ou ampliações de creches atrasadas. Dessas, 90% estão paradas — algumas com tantos problemas burocráticos e há tantos anos que nem seria mais possível retomá-las.

Desigualdades

No começo do ano, o governo federal anunciou a liberação de R$ 250 milhões para a retomada de mais de mil obras de infraestrutura escolar. Uma parte delas é de creches, mas esse número ainda não foi revelado.

Em Guapimirim (RJ), por exemplo, a construção de uma creche ficou anos interrompida com pouco mais de 46% concluída, após o contrato, firmado em 2013, ser rescindido. Ela era para ser entregue em 2015. A obra voltou neste ano e atenderá mais de 200 crianças.

Além de não avançar na meta, esse desenvolvimento ainda é muito desigual, como mostra a tese “Acesso à creche nos municípios brasileiros”, trabalho que rendeu o título de doutor em Educação pela Universidade de São Paulo a André Augusto dos Anjos Couto neste ano.

Os resultados do pesquisador revelaram que em 2019, o quinto ano de vigência do PNE, 36,4% dos municípios atendiam em média 15,5% das crianças até três anos; 49,2% atendiam 35,7% desta população; e somente 1,9% atendiam mais de 85,0%. Além disso, municípios com baixo nível socioeconômico tinham percentual médio de 27,4%, enquanto no de maior nível o índice é de 45,6% de crianças estudando nessa etapa escolar.

— A gente vê ainda desigualdades localizadas. No Norte, 17% das crianças estão na creche contra 42% do Sul, por exemplo — afirma Couto. — Isso é importante porque políticas públicas devem focalizar essas cidades que mais precisam, em especial as mais distantes de centros urbanos e do Norte do país.

Quem consegue uma vaga geralmente se agarra a ela mesmo em meio a dificuldades. Uma mãe de 30 anos da Zona Oeste do Rio, com quatro filhos, só conseguiu vaga para a filha caçula em uma comunidade perto de onde ela mora. Ela, porém, semanalmente fica impossibilitada de entrar na região por conta dos tiroteios. Todas as manhãs a mãe checa o grupo de WhatsApp dos moradores para ver se é possível subir o morro.

— Sustento minha casa e meus filhos sozinha. O pai deles não liga. Se não for eu, eles não têm ninguém — conta a moradora de uma grande metrópole brasileira. — Estava trabalhando como vendedora, mas tive que sair porque quase não tinha aula. Agora, sobrevivo de bicos que consigo.

Já Marianna Barbosa, de 25 anos, encara uma caminhada de meia hora, todo dia, com o filho de 2 anos no colo. No bairro dela tem uma creche, mas ela não conseguiu vaga. A diretora da unidade está, atualmente, tentando ajudá-la com uma transferência.

— Demoramos para conseguir essa vaga e, nesse tempo, já perdi algumas oportunidades profissionais por conta dele não ter creche — diz a moradora de Mesquita, na Baixada Fluminense. — O problema é que não tem transporte. Eu que me vire! Ele só tem dois aninhos, eu fico com dó de deixar ele andar todo esse caminho, ainda mais que aqui onde eu moro é um morro alto.

De acordo com o pesquisador André Couto, ficou no passado a percepção de que creche é só para o cuidado:

— As pesquisas atuais mostram que é fundamental a criança ir para a creche porque, quando ela tem qualidade, esse ambiente vai permitir que ela desenvolva suas capacidades por meio de estratégias o desenvolvimento psicossocial, corporal e mental.


Fonte: O GLOBO