Luís Fernandes Guedes Pinto defende preservação e restauração para assegurar produção agrícola, recursos hídricos, cumprimento de metas climáticas e redução de tragédias, mas alerta: “MP é um tiro no pé”

A Amazônia é o tema central da maioria dos debates sobre a crise climática no Brasil. Entretanto, da mesma forma em que se faz urgente frear o desmatamento da maior floresta tropical do mundo, é de suma importância promover a restauração de áreas degradadas da Mata Atlântica para que o país garanta equilíbrio ambiental e cumpra seu papel na meta internacional de limitar o aquecimento da Terra.

O potencial de sequestro de carbono a partir de experiências exitosas de reflorestamento é destacado por Luís Fernandes Guedes Pinto, diretor executivo da ONG SOS Mata Atlântica, como um trunfo do bioma na agenda do clima. Em dezembro passado, por exemplo, a ONU reconheceu, durante a COP-15, o Pacto Trinacional da Mata Atlântica, entre Brasil, Argentina e Paraguai, como uma das dez melhores iniciativas de restauração de ecossistema em larga escala e longo prazo no mundo

Ele também exalta dados indicando o perfil sustentável da produção agrícola brasileira na região. É a floresta do futuro, defende o especialista. Mas Guedes alerta: retrocessos como a Medida Provisória 1150, recém-aprovada no Congresso Nacional, podem colocar tudo a perder.

Leia a entrevista completa:

Por que a Mata Atlântica é essencial no combate ao aquecimento global?

Por muito tempo, entendemos que a solução era parar de desmatar, porque o desmatamento emite gases de efeito estufa. Quando juntava floresta, clima e Brasil, se falava exclusivamente da Amazônia, onde a destruição é muito maior, embora o desmatamento na Mata Atlântica esteja crescendo. Era como se a Mata Atlântica não tivesse a mesma importância. 

Mas, quando se fala de soluções baseadas na natureza, parar de desmatar não é suficiente. A restauração tem papel crítico para que alcancemos as metas de conter o aquecimento global. A melhor tecnologia para sequestrar carbono e aumentar os serviços ambientais é plantar floresta, e a Mata Atlântica é o bioma da restauração.

Um estudo com a sua participação revela que a agropecuária na Mata Atlântica produz mais da metade dos alimentos consumidos no país e emite apenas 26% dos gases do efeito estufa na agropecuária. Como isso se relaciona com um futuro sustentável?

A Mata Atlântica pode ter agricultura de carbono negativo. Isso se chegarmos ao desmatamento zero, fizermos a restauração e incentivarmos a agricultura de baixo carbono. Hoje, na Mata Atlântica, há mais diversidade de culturas, imóveis rurais menores e experiências agroecológicas bem sucedidas, enquanto, no Cerrado, ainda vigora o modelo das monoculturas. A Mata Atlântica produz um terço da soja brasileira e um quarto do gado. Com boas políticas públicas, podemos garantir tudo sem comprometer produtividade.

Quais os desafios da Mata Atlântica ?

A situação ainda é de alta ameaça e futuro incerto, mas, ao mesmo tempo, há boas notícias. Na série histórica, estamos perdendo floresta, e, ano passado, o desmatamento foi alto. A biodiversidade sofre ameaças. 

Mas, aqui, já demonstramos capacidade de restauração. Temos potencial para multiplicar boas práticas e recuperar o bioma em grande escala. Nós vamos misturando boa notícia e má notícia ao mesmo tempo.

Onde está a vegetação remanescente da Mata Atlântica? E onde o desmatamento é mais crítico na região?

A Mata Atlântica ocorre em 17 estados, mas um problema é que o que sobrou está distribuído de maneira desigual. Há blocos maiores e contínuos na Serra do Mar, Serra da Mantiqueira, Parque do Iguaçu e alguns blocos da Bahia, principalmente. Mas há áreas onde sobrou muito pouco, como no interior de São Paulo, de Minas, na Bahia e Pernambuco. 

Outro problema é que só uma parte pequena é protegida por Unidades de Conservação e Terras Indígenas. As unidades de proteção integral não chegam a 5% da área total. Então, temos um bioma com muita biodiversidade, mas muito fragmentado, espalhado em terras particulares

A Mata Atlântica garante serviços ambientais para cerca de 70% da população brasileira. Como essas pessoas são diretamente afetada pelo bioma?

Podemos dizer que garante serviços parcialmente. Se tivéssemos mais floresta, teríamos menos crise hídrica, menos enchentes e menos deslizamentos. Na última década, os eventos climáticos extremos se acentuaram, e temos muitas populações vivendo em área de risco, onde deveria ter floresta. 

Tragédias como aquelas que aconteceram em Petrópolis, Angra dos Reis e Ubatuba, recentemente, mostram as terríveis consequências dessa realidade.

Como recuperar esses serviços?

Precisamos restaurar a floresta, para proteger mananciais, o que vai garantir oferta de água nas cidades. Rios e morros desmatados facilitam enchentes e deslizamentos. A restauração ajuda na produção de comida, pois com mais biodiversidade, há mais produtividade e maior controle de pragas e doenças. 

A gente precisa plantar floresta para conectar os pedaços fragmentados, para a biodiversidade poder transitar pelo bioma. Com mais floresta, teríamos muito mais serviços ambientais e menos tragédias.

Quais políticas públicas e ferramentas temos para preservação e restauração?

A Lei da Mata Atlântica trata da sua preservação e restauração de uso. Mas ela tem sido atacada pelo Executivo e Legislativo nos últimos anos. Precisamos manter a lei intacta e aplicá-la como devido. 

Como política de restauração, a ferramenta é o Código Florestal. Com sua aplicação, vamos restaurar por volta de três milhões de hectares de mata ciliar, que protegia nascentes e rios. Mas o código precisa de uma implementação de fato. Há ainda outras ferramentas, como o Plano Nacional de Vegetação Nativa, que foi abandonado no governo Bolsonaro, mas deve ser retomado agora.

Qual impacto que a Medida Provisória aprovada pela Câmara dos Deputados no mês passado pode causar ?

O impacto é tremendo. Primeiro porque a MP permite novos desmatamentos, ao alterar a aplicação da Lei da Mata Atlântica. Um retrocesso enorme. Para alcançar desmatamento zero até 2030, temos que começar pela Mata Atlântica, onde é mais fácil restaurar e impedir a depredação. 

Europa, China e EUA não aceitarão produtos de desmatamento. Então, é um tiro no pé. Ideal seria o governo federal rejeitar a MP inteira.

O "tratoraço ambiental" impacta em vários biomas. Por que lutar pela Amazônia é também defender a Mata Atlântica?

Se a gente destrói a Amazônia, grande parte da umidade gerada não vai chegar no Sul do país, que, assim, terá menos chuvas. Isto significa mais crise hídrica e de biodiversidade na Mata Atlântica. A interdependência entre os biomas é grande, o que é fácil ver nas bacias hidrográficas. 

O Rio São Francisco, por exemplo, atravessa três biomas (Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado). Florestas que acompanham os rios vão transitando, é tudo muito interligado, a preservação de uma influencia na outra.


Fonte: O GLOBO