Karen Strier tinha 23 anos quando, numa viagem ao Brasil, se encantou com o animal, conhecido como macaco hippie, que semeia árvores e tem ligação íntima com bioma ameaçado

Quando conheceu os muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus) da Mata Atlântica, em Caratinga, Minas Gerais, a antropóloga americana Karen Strier tinha 23 anos. Encantou-se de imediato pelo maior macaco das Américas, que estava à beira de desaparecer. Desde aquele dia, Strier dedicou aos muriquis a paixão e a carreira. Uma história de amor que transformou o destino dos muriquis, aumentou a compreensão que temos sobre eles, a Floresta Atlântica e a nossa própria espécie.

Comedor de folhas e frutos, morador das copas da floresta, o muriqui é da paz, não tem hierarquia entre os sexos. Vivem entre abraços e chamegos. E a fêmea é quem sai em busca de novos bandos e parceiros. Não à toa, é chamado de macaco hippie. Semeador de árvores nativas e acossado pela perda de habitat, o muriqui materializa a resiliência e os desafios da Mata Atlântica.

Mas, quando Strier viu os muriquis pela primeira vez, não se sabia de nada disso. A maior parte do que se conhece sobre o comportamento da espécie se deve a ela e aos estudos realizados no projeto que criou, sediado na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga.

A RPPN foi criada em 2001, mas a área, na Fazenda Montes Claros, foi protegida pelo fazendeiro cujo nome homenageia desde 1944, o que deu aos muriquis um refúgio numa das regiões mais devastadas da Mata Atlântica, o Vale do Rio Doce.

Passados 40 anos, completados este mês, ela celebra o êxito do Projeto Muriquis de Caratinga, um dos programas de pesquisa e conservação mais longos e bem-sucedidos do planeta. Strier, referência internacional em primatologia, busca dar esperança aos jovens pesquisadores que chegam, num momento em que as mudanças climáticas e o desmatamento tornam o mundo dos muriquis ainda menor. 

A cientista divide seu tempo entre a Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, e as pesquisas na Mata Atlântica brasileira. Ela falou ao GLOBO, de Caratinga, onde está para celebrar o aniversário do projeto.

Como avalia as quatro décadas?

Há muitas conquistas,. Destaco a produção de conhecimento. Oitenta e sete pesquisadores, entre mestrados e doutorados, passaram pelo projeto. Somados, são 110 anos de pesquisa. E as pessoas passaram a conhecer mais a espécie, a admirá-la e protegê-la. A população de muriquis de Caratinga, a maior da espécie, aumentou quatro vezes e meia em relação a 1983, quando começamos. Hoje temos 332 indivíduos, conhecemos cada um deles. Mas há razões para pessimismo.

Quais?

Os muriquis, tanto do norte quanto do sul, continuam criticamente ameaçados de extinção, porque seu habitat, a Mata Atlântica está em retalhos sem conexão. Já tivemos em Caratinga uma população maior que a atual. Em 2017, na epidemia de febre amarela, perdemos em seis meses 10% da população em relação ao que havia em 2015. E não é só isso.

O que mais?

A mudança do clima traz um desafio imenso. As florestas do Vale do Rio Doce, onde fica a maior concentração de muriquis-do-norte, estão mais secas e, por isso, vulneráveis. A tendência é de agravamento do problema e há ainda o desafio do El Niño, que reduz as chuvas nessa região. Os muriquis são resilientes e adaptáveis. Mas precisam de ajuda.

Por quê?

Os muriquis são muito adaptáveis, os grupos mudam de tamanho, são capazes de andar eretos no chão da floresta para procurar comida. Mas seu ritmo de vida é ditado pelos ciclos da natureza. Por volta de 6 anos, com a chegadas das chuvas, as fêmeas deixam seu grupo em busca de novos bandos. Elas podem trocar de grupo várias vezes até se darem por satisfeitas. 

Mas em fragmentos isolados ficam presas ou se veem obrigadas a acompanhar outros animais, como os bugios. Com isso, não se reproduzem nem ajudam a repovoar a floresta.

O que deve ser feito?

Precisamos estabelecer corredores entre os fragmentos de mata. Desde 2004 isso é discutido. Se fala, mas não se faz. Existem pequenas populações isoladas fadadas a desaparecer sem conexão. Temos que dar aos muriquis isolados uma chance, um caminho para escapar da seca e da fome. Se as pessoas deixarem a floresta se regenerar em paz, ela se recupera, os próprios muriquis espalham sementes. Esses corredores são urgentes.

Por quê?

O clima já mudou e a tendência é de mais seca. Vivemos num novo tempo. Mas sem água, as pessoas invadirão cada vez mais as florestas, num ciclo vicioso. Isso tem desdobramentos. Se o Brasil não conservar o que restou de Mata Atlântica, como poderá convencer o mundo de que é capaz de proteger a Amazônia?

Como compara as dificuldades que encontrou há 40 anos com os desafios de agora?

Há 40 anos, não havia RPPN, nem eletricidade na área menos ainda telefone celular. Ninguém conhecia o muriqui. Hoje temos drones e armadilhas fotográficas, sistemas de som que medem biodiversidade. A primatologia brasileira é referência no mundo, me considero brasileira e sinto orgulho de fazer parte dessa história. Os desafios hoje são de outra ordem. Faltam recursos para a ciência e há um ambiente político hostil ao meio ambiente e à pesquisa.

A senhora disse que há motivos para pessimismo e otimismo. Como se sente?

Gostaria de relaxar um pouco. Mas não é possível nesse momento. Ainda assim, sou uma otimista. Digo sempre aos jovens pesquisadores para não se desesperarem, é possível salvar os muriquis e a Mata Atlântica.


Fonte: O GLOBO