Gestão Ricardo Nunes estacionou plano de Covas para concessão de áreas embaixo de pontes. Projetos sem fins lucrativos oferecem aulas e cursos profissionalizantes na cidade

Parte das centenas de viadutos que dão vazão ao trânsito paulistano não serve apenas como um local de passagem para veículos, ou de morada para pessoas em situação de rua. Sob as pontes da cidade podem existir sacolões, projetos sociais, áreas para a prática de esportes, até mesmo atividades comerciais.

Em 2019, a gestão Bruno Covas (PSDB) identificou 85 viadutos com potencial para ganhar um novo uso e prometeu incentivar a transformação desses espaços, Mas desde então só três parcerias foram firmadas com concessionárias interessadas em explorar comercialmente esses locais — nos viadutos Antártica, Lapa e Pompeia, todos na Zona Oeste. Na atual administração de Ricardo Nunes (MDB), não há nenhum edital em andamento para esse tipo de concessão.

Os desafios para cuidar desses espaços são vários, e foram elencados em um documento da própria prefeitura em 2016: embaixo de viadutos há fluxo intenso e ruidoso de veículos, espaços estreitos e pouca iluminação natural. Alguns exemplos bem-sucedidos, porém, provam que esses obstáculos podem ser superados.

O tetracampeão mundial de muay thai Moisés Batista, conhecido como Gibi, mora há 25 anos na Bela Vista, bairro da região central, onde mantinha uma academia de luta na Rua Martinho Prado. Do local era possível ver o Viaduto Júlio de Mesquita Filho, onde abaixo do vaivém de carros que fazem o trajeto na ligação Leste-Oeste acumulava-se lixo, entulho, e poucos se arriscavam a passar a pé por medo de usuários de drogas que se reuniam ali.

Gibi elaborou um projeto para transformar o espaço em uma escola de muay thai ainda em 2003, mas não encontrou apoio político para tirar a ideia do papel. Conseguiu retomar a proposta mais de uma década depois com a ajuda de Klaus Pian, empresário conhecido das noites paulistanas.

A dupla se inspirou em projetos existentes embaixo de viadutos da Holanda, da Argentina e dos Estados Unidos e apresentou a proposta à prefeitura, que aceitou abrir uma concorrência pública para cessão do espaço em 2016. Hoje o local é equipado com tatame, ringue, arquibancada, duas salas de musculação e uma área externa com bicicletas ergométricas e esteiras. Frequentam o espaço crianças a partir de 6 anos e idosos acima dos 70 anos que nunca haviam experimentado uma rotina de exercícios físicos.

— No começo alguns alunos hesitaram, acharam estranho ir para baixo do viaduto. Mas logo todos abraçaram o projeto e até ajudaram a plantar nosso jardim, construímos uma família aqui. Já veio morador do bairro dizer que ele mesmo jogava lixo aqui na rua e agora se reeducou. É um ciclo que ajuda a melhorar a cidade, além de popularizar o esporte — diz Gibi.

O professor de muay thai relembra que não contou com patrocínios ou aportes financeiros da prefeitura para construir a academia. Essa falta de ajuda afeta hoje outro projeto abrigado sob um viaduto, o Tesourinha, que oferece cursos profissionalizantes para cabeleireiros, manicures e profissionais de toda sorte de serviços estéticos em Moema, na Zona Sul.

— Temos muitas dificuldades para tocar o dia a dia, seria importante termos um veículo para transportar os alunos ou alguma parceria para oferecer refeições. Muitos não conseguem vir para cá por causa da fome ou por não ter dinheiro para a condução — diz Ivan Stringhi, fundador do Tesourinha.

Hoje aos 56 anos, Ivan começou o projeto em 1994, quando sua ideia de ensinar pessoas de baixa renda a cortarem cabelos foi incentivada por uma de suas clientes, a ex-primeira-dama Ruth Cardoso. Com a ajuda de outro cliente, dono de uma construtora, o Tesourinha se instalou sob o viaduto da Avenida Ibirapuera no cruzamento com a Avenida Bandeirantes. Já formou cerca de 90 mil alunos em suas quase três décadas de existência, entre estes pessoas com dificuldades de se posicionar no mercado de trabalho, como transexuais, ex-presidiários e ex-frequentadores da Cracolândia.

Falta de estímulos

A legislação sobre o uso de espaços sob viadutos sofreu diversas alterações desde 1994, quando passou-se a discutir maneiras de transformar esses pontos de passagem em pontos de encontro. A última mudança, proposta em dezembro pelo prefeito Ricardo Nunes, inclui esses espaços no Plano Municipal de Desestatização. As regras atuais são diferentes para projetos de interesse social, que podem receber a permissão de uso sem a necessidade de concorrência pública, e iniciativas comerciais.

O empresário Klaus Pian, sócio da academia de Gibi, reclama que falta incentivo para as empresas investirem nesse tipo de empreendimento:

— O tempo de concessão, em geral, é de três anos. Nenhuma marca quer fazer um investimento alto para transformar o baixo de um viaduto e correr o risco de ser despejada na eleição seguinte. A lei não protege quem investe nesses espaços, que não têm um logradouro, não têm um número, que é difícil de fazer ligação de luz, de água. A gente precisa insistir para existir nesses locais.

Além das dificuldades referentes ao apoio do poder público, os inquilinos de viadutos também convivem com a violência e o preconceito. O projeto Tesourinha já teve computadores roubados de sua sede, e a academia de Moisés Gibi precisou instalar cercas de arame farpado sobre o muro da entrada após ter sido invadida.

— Sempre sofremos um pouco de preconceito. Muitos amigos que dizem admirar nosso trabalho nunca vieram nos visitar. Até pessoas que fazem doações evitaram fazer isso presencialmente. Acho que as pessoas têm medo de vir para baixo do viaduto. Mas é um espaço maravilhoso, só precisa olhar com amor e carinho — diz Ivan Stringhi.

Na Vila Olímpia, onde os viadutos que ligam a Avenida Bandeirantes à Marginal Pinheiros servem de sede para uma arena com pistas e rampas para bicicross (BMX) e skate, até mesmo os postes de iluminação já foram saqueados.

No local funciona a Arena Radical, um espaço que promove atividades gratuitas para alunos da rede pública e pessoas de baixa renda. Além dos esportes radicais, também há aulas de jiu-jitsu e oficinas profissionalizantes para construção de rampas e manutenção de bicicletas.

— O viaduto é uma conexão, e o que fazemos aqui embaixo desse monte de concreto é conectar positivamente as pessoas com a cidade através do esporte, de forma democrática, fazendo bom uso do espaço público. É preciso acabar com a imagem de que viaduto é um espaço que apenas oculta a miséria e violência — diz Alexandre Mertens, um dos diretores da Arena Radical.

Em nota, a prefeitura informou que tem a intenção de firmar parcerias para o “desenvolvimento de ações de requalificação dos espaços urbanos para ativação sociocultural da área e do seu entorno, mesclando equipamentos de lazer, esporte, convivência e infraestrutura que possibilitem a permanência dos transeuntes naquele local”. Acrescentou que “está sempre atenta às oportunidades que possam beneficiar os munícipes e diminuir gastos”.


Fonte: O GLOBO