Presidente disse que Brasil não abre mão das compras governamentais, que disse serem um instrumento de desenvolvimento interno
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta quarta-feira que o Mercosul irá enviar sua contraproposta às demandas da União Europeia (UE) para o acordo comercial entre os blocos em um prazo "de duas a três semanas". As negociações de décadas agora esbarram nos termos de um documento adicional — a chamada side letter —, no qual os europeus exigem compromissos comerciais entendidos como protecionistas pelos latino-americanos.
Lula comentou o assunto durante uma entrevista coletiva em Bruxelas, um dia após o encerramento da cúpula entre a UE e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Conversas sobre o acordo foram escanteadas no encontro devido à improbabilidade de avanços nas discussões neste momento.
— Nós fizemos a resposta brasileira. A resposta brasileira está sendo discutida com os quatro países (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, integrantes do grupo), e depois, nós vamos, daqui a duas semanas, três semanas, nós vamos entregar definitivamente a proposta para a União Europeia — disse Lula.
Lula disse que deseja aparar todas as arestas e finalizar o acordo enquanto a Espanha está na Presidência rotativa da UE — mandato que começou dia 1º e vai até 31 de dezembro — e enquanto o Brasil está no comando do Mercosul. Ele afirmou estar "otimista" em resolver tudo ainda neste ano.
O presidente também abordou os dois temas mais controversos da negociação sobre o acordo atualmente: a revisão do texto sobre compras governamentais, exigência do Mercosul, e um novo compromisso ambiental, demanda dos europeus. Lula disse que o Brasil não abre mão das compras governamentais, que disse serem um instrumento de desenvolvimento interno.
— Os Estados Unidos fazem isso, a Europa faz isso, a Alemanha faz isso, e o Brasil tem direito de fazer isso — disse o presidente, argumentando que, com as compras governamentais centralizadas no estado, seria possível desenvolver a indústria da saúde no Brasil.
Na atual redação do acordo, as empresas da União Europeia e do Mercosul poderiam participar de licitações abertas pelo setor público. Haveria condições de igualdade com as empresas locais, salvo algumas exceções para compras de insumos na área de saúde pública, por exemplo. O acordo, em termos gerais, busca aumentar a concorrência em licitações públicas.
O ponto crítico é que as empresas estrangeiras podem ser beneficiadas em detrimentos das nacionais. Segundo o presidente, "a gente tem que aproveitar um programa dessa magnitude [do SUS], o potencial de compra que tem o SUS para que a gente possa desenvolver internamente no Brasil uma indústria da saúde”.
O presidente também argumentou que, se as compras governamentais são importantes para os europeus, devem ser também para os membros do Mercosul. Segundo ele, abrir mão delas equivaleria a "matar as pequenas e médias empresas":
— A compra governamental é um instrumento de política industrial soberana de cada país. Isso vale para os Estados Unidos, isso vale para a China, isso vale para a Alemanha, isso vale para a França, e isso vale para a Bélgica. Esse é um instrumento importante de que nenhum país pode abrir mão. Por que um país que tem o tamanho do Brasil, as possibilidades do Brasil, vai abrir mão? Para matar as nossas pequenas e médias empresas.
'Alguém tem que ceder'
O outro ponto-chave dos impasses diz respeito às demandas ambientais da UE na side letter — adendo que, na prática, amplia e modifica o corpo do acordo. Pressionados pela sociedade e pelo setor privado para se mostrar atuantes no combate às mudanças climáticas, os europeus querem a antecipação de metas já anunciadas pelos países em conferências internacionais, principalmente no âmbito das Nações Unidas, e a incorporação ao acordo de livre comércio de entendimentos globais, entre eles, como o Acordo de Paris, selado em 2015.
Há um temor em particular dos agricultores de países como a França e a Irlanda, que se sentem ameaçados pelas consequências do pacto. A Assembleia Nacional da França, por exemplo, estabeleceu condições para aprovar um eventual acordo comercial entre a União Europeia, pedindo que o Executivo do país faça oposição ao acordo comercial entre os dois blocos.
O texto, apoiado por parlamentares da base do presidente Macron, é sem força de lei e considerado simbólico, mas demanda que os agricultores sul-americanos respeitem as mesmas regras ambientais e sanitárias da Europa. As exigências, contudo, são consideradas protecionistas pelo Mercosul, além de serem vistas como uma intenção de tutelar sua política ambiental.
Segundo Lula, a proposta da UE impõe ameaças, e o Brasil não negociará nestes termos:
— A Europa tinha feito uma carta agressiva, que ameaça com punição se a gente não cumprisse determinados requisitos ambientais. A gente disse pra União Europeia que dois parceiros estratégicos não discutem com ameaças — disse o presidente.
Lula disse ainda que “a riqueza da negociação é que alguém tem que ceder” e defendeu a proteção de mercados internos.
— A França é muito ciosa da produção do seus produtos agrícolas, da sua pequena e média agricultura, do seu frango, da sua verdura, do seu queijo, do seu leite, do seu vinho. Da mesma forma que a França tem essa primazia de defender a unhas e dentes o seu patrimônio produtivo, o Brasil tem que defender o nosso.
O Mercosul alcançou em 2019 um acordo com a UE após mais de 20 anos de negociações, mas o pacto não foi ratificado, em parte devido à preocupação na Europa com as políticas ambientais do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (2019-2022). Com o retorno de Lula ao poder, em janeiro, o clima melhorou, mas os impasses moderaram o entusiasmo.
Apesar da situação, Lula disse que nunca viu interesse tão grande da UE na América Latina, e que acredita que isso se explica, em parte, pela China e pela guerra na Ucrânia. O conflito, contudo, foi outro ponto de discórdia na cúpula UE-Celac, pois não houve consenso para incluir uma condenação à Rússia na declaração final.
— Poucas vezes vi tanto interesse politico e econômica dos países da UE com seus interesses na América Latina, possivelmente pela disputa entre EUA e China, possivelmente pelos investimentos da China na América Latina, possivelmente pela Nova Rota da Seda, possivelmente pela guerra.
Lula lembrou que a UE demostrou muito interesse em retomar investimentos na América Latina e anunciou 45 bilhões de euros, parte dos quais já são de projetos em andamento, “mas não deixa de ser importante”.
Fonte: O GLOBO
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