Agressores são dirigentes e até mesmo o treinador de uma das seleções

Entre os problemas que o futebol feminino historicamente enfrenta, o abuso sexual de jogadoras pelas autoridades masculinas que as cercam é constante. Ao menos duas seleções desta Copa do Mundo Feminina 2023 passaram por situações assim: Haiti e Zâmbia, estreantes em Mundiais. Mesmo em países em que o futebol feminino é mais consolidado há denúncias do tipo. Por isso, seleções emergentes como essas têm crises ainda mais vivas. Em nenhum dos casos, a punição parece dura o suficiente para inibir a reincidência.

Em abril de 2020, o jornal britânico The Guardian denunciou: Dadou, apelido de Yves Jean-Bart, presidente da federação de futebol do Haiti desde 2000, teria abusado sexualmente de várias jogadoras, incluindo menores de idade, nos seus últimos cinco anos à frente da entidade. De acordo com a denúncia, o abuso era sistêmico e perpetrado não apenas por Dadou, mas por outros dirigentes da cúpula do futebol do Haiti. 

Os estupros se davam no centro de treinamento da federação. Uma vítima, mantida anônima, explicou o esquema: o presidente identificava garotas que gostava, e elas eram ameaçadas com expulsão do centro. Para evitarem isso, precisavam procurar Dadou pessoalmente. Nessas conversas a sós, Dadou abusava delas. Uma das garotas, de apenas 14 anos, chegou a engravidar do dirigente e foi levada a fazer um aborto por funcionários da federação, embora abortar seja ilegal no país.

Após a publicação da matéria, a Fifa agiu: suspendeu Dadou por seis meses enquanto seu comitê de ética passou a investigar o caso. O órgão produziu um relatório, que concluiu que o comportamento do dirigente era “simplesmente indesculpável, uma desgraça”. O documento dizia que a dor e o sofrimento causados por Dadou “não podem sequer começar a ser compreendidos”. Em novembro daquele ano, como resultado das investigações, a Fifa baniu para sempre o dirigente de atividades relacionadas ao futebol, além de multá-lo em 1 milhão de francos suíços (R$ 5,5 milhões).

Dados do Banco Mundial posicionam o Haiti como o país mais pobre da América Latina e do Caribe, e um dos mais pobres do mundo. Nessa situação de vulnerabilidade social, famílias muito pobres entregam suas crianças para serem “restaveks”, servos infantis, por não terem condições para criá-las. O termo vem do francês “rest avec” (permanecer com alguém).

Para a Fifa, Dadou havia se aproveitado dessa situação para transformar jovens jogadoras, que sonhavam com a ascensão social pelo futebol, em suas escravas sexuais. A situação teria levado muitas delas a desistirem do esporte. 

Em fevereiro deste ano, Dadou conseguiu importante vitória judicial: o Tribunal Arbitral do Esporte, corte internacional que regulamenta disputas legais na área, anulou a punição da Fifa. Na sentença, o tribunal disse haver “inconsistências e imprecisões nas declarações das vítimas” e que, portanto, as acusações careciam de provas.

A decisão foi criticada por órgãos internacionais de direitos humanos. A Fifa negou o pedido de Dadou para a recondução ao cargo no Haiti e, em manobra rara na entidade, apelou do veredito. Enquanto isso, as haitianas disputam a Copa. Estrearam com derrota para a Inglaterra (1 a 0) e, nesta sexta, enfrenta a China.

Após surpreender nos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020, sobretudo pela incrível performance de sua estrela Barbra Banda, Zâmbia se classificou para a sua primeira Copa do Mundo. A expectativa era de que o país pudesse fazer mais uma boa campanha. 

Mas às vésperas da competição, uma bomba surgiu: também o jornal The Guardian publicou que há uma investigação da Fifa em curso contra Bruce Mwape, técnico da seleção zambiana. A acusação é de que as jogadoras seriam obrigadas a fazer sexo com ele em troca de lugares na equipe.

A situação foi revelada ao jornal britânico por uma fonte interna, que afirmou ainda que a federação local sabe do caso de abuso sexual, mas não faz nada para não manchar a imagem da seleção enquanto os resultados são positivos. Questionada sobre o assunto, a Fifa respondeu que não pode dar detalhes sobre investigações em curso. O silêncio seguiu imperando na preparação da seleção zambiana para a Copa.

Porém, cortes inesperados de duas importantes jogadoras chamaram a atenção da imprensa internacional. Hazel Nali, goleira titular, e Grace Chanda, camisa 10 e principal articuladora da equipe, foram desligadas por supostas lesões. A federação não apresentou nenhum exame ou teste que comprovasse que elas se machucaram, o que levou a especulações de que estariam sofrendo algum tipo de retaliação.

Na Copa, a seleção de Zâmbia estreou diante do Japão, sem somar sequer uma finalização na partida. A derrota por 5 a 0 foi talvez a exibição mais lamentável na primeira rodada de uma Copa do Mundo que viu várias seleções estreantes ou consideradas mais fracas surpreenderem com duros jogos contra favoritas. Perdidas taticamente, as atletas zambianas nem trocavam palavras com o treinador Bruce Mwape.

Na coletiva de imprensa antes do segundo jogo, contra a Espanha, três jornalistas fizeram perguntas sobre o assunto. Mwape respondeu a apenas um: questionado se cogitou pedir demissão devido ao “ambiente ruim”, o treinador afirmou que a verdade sobre o que a mídia internacional tem publicado sobre o caso virá à tona em breve.

Nesta quarta, Zâmbia voltou a campo, contra a Espanha. O resultado se repetiu: outra goleada de 5 a 0.

*Aurélio Araújo e Carlos Massari fazem parte do projeto Copa Além da Copa, que analisa esporte, cultura, história e sociedade.


Fonte: O GLOBO