Conjunto de fatores, que também inclui a dificuldade de se preencher vagas consideradas 'indesejadas', levou a uma alta de 37% nas violações em 2022, em tendência que deve se manter neste ano
Tal conjunção de fatores levou os Estados Unidos a uma alta de 37% nos casos de violação do trabalho infantil em 2022, em relação ao ano anterior, e um alarmante aumento de 283% desde 2015, segundo dados do Departamento de Trabalho (DOL, na sigla em inglês) americano.
Com a ressalva de que se trata apenas das violações detectadas pelo governo federal (o que significa que o número real pode ser muito maior), somente no ano fiscal de 2022, que vai de setembro de 2021 a outubro passado, foram registrados 3.872 casos, sendo 688 em ocupações perigosas — e tudo indica que a tendência se manterá em 2023.
Nos últimos dois anos, 14 estados americanos, em sua maioria conservadores, apresentaram — e seis aprovaram — leis que modificam e retrocedem nas proteções fundamentais para o trabalho infantil no país, segundo relatório do Instituto de Política Econômica (EPI, na sigla em inglês). São eles: Arkansas, Dakota do Sul, Georgia, Iowa, Maine, Michigan, Minnesota, Missouri, Nebraska, New Hampshire, Nova Jersey, Ohio, Virginia e Wisconsin.
Em suma, os projetos aumentam o número de horas de trabalho, retiram restrições para ocupações consideradas perigosas, reduzem a idade mínima para trabalhar em locais que servem bebidas alcoólicas (ainda que seja proibido o consumo antes dos 21 anos) e estabelecem salários sub-mínimos.
Reflexo da pandemia?
Algumas das justificativas recaem sobre a falta de mão de obra como consequência da pandemia de Covid-19. Em abril de 2020, os EUA enfrentaram um pico de 14,7% na taxa de desemprego — o maior desde a Grande Depressão de 1929 —, afetando mais de 20,5 milhões de americanos.
Com a ressalva de que se trata apenas das violações detectadas pelo governo federal (o que significa que o número real pode ser muito maior), somente no ano fiscal de 2022, que vai de setembro de 2021 a outubro passado, foram registrados 3.872 casos, sendo 688 em ocupações perigosas — e tudo indica que a tendência se manterá em 2023.
Nos últimos dois anos, 14 estados americanos, em sua maioria conservadores, apresentaram — e seis aprovaram — leis que modificam e retrocedem nas proteções fundamentais para o trabalho infantil no país, segundo relatório do Instituto de Política Econômica (EPI, na sigla em inglês). São eles: Arkansas, Dakota do Sul, Georgia, Iowa, Maine, Michigan, Minnesota, Missouri, Nebraska, New Hampshire, Nova Jersey, Ohio, Virginia e Wisconsin.
Em suma, os projetos aumentam o número de horas de trabalho, retiram restrições para ocupações consideradas perigosas, reduzem a idade mínima para trabalhar em locais que servem bebidas alcoólicas (ainda que seja proibido o consumo antes dos 21 anos) e estabelecem salários sub-mínimos.
Reflexo da pandemia?
Algumas das justificativas recaem sobre a falta de mão de obra como consequência da pandemia de Covid-19. Em abril de 2020, os EUA enfrentaram um pico de 14,7% na taxa de desemprego — o maior desde a Grande Depressão de 1929 —, afetando mais de 20,5 milhões de americanos.
Mas o cenário logo se recuperou nos meses subsequentes, retornando ao patamar pré-pandêmico e estável de pleno emprego no país. Em abril deste ano, por exemplo, a taxa atingiu a mínima histórica de 3,4%, a menor desde 1969. Atualmente, está nos 3,6%.
— Colocar na conta da pandemia é furada, porque esse aumento [no número de violações] começa a ser registrado a partir de 2015. A pandemia acelerou isso, mas, ao mesmo tempo, os EUA vêm com um ciclo de pleno emprego desde o final do governo Obama — diz o professor de História dos EUA da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca, Marcos Sorrilha.
O fato de mais americanos adultos estarem empregados e com salários altos faz com que vagas em determinadas ocupações — como em restaurantes, fábricas e lojas de varejo — não sejam tão facilmente preenchidas. É aí que entra a busca pelos menores de idade, cuja mão de obra é menos qualificada e, por consequência, mais barata.
O cenário se define ao ser somado o fato de que cada vez mais menores imigrantes têm entrado no país desacompanhados — somente em 2022, esse número chegou a 130 mil, mais da metade vindo da Guatemala, segundo o EPI.
— Este país tem um histórico de exploração de trabalhadores imigrantes, especialmente os indocumentados. A demanda empresarial por mão de obra barata está arraigada em nossa economia capitalista de “livre mercado” — explica o professor e diretor de projetos do Centro de Trabalho da Universidade da Califórnia (UCLA), Victor Narro. — Trabalhos que antes iriam para adultos imigrantes indocumentados agora vão para as crianças nessa situação.
Conforme as rígidas e amplamente criticadas regras imigratórias do país — que entraram em vigor no governo Biden em substituição ao Título 42, norma ainda mais severa imposta no governo Trump durante a pandemia —, após se entregarem às autoridades federais, menores imigrantes geralmente são designados a um responsável, idealmente um dos pais ou um familiar — caso contrário, procura-se um tutor para assumir a responsabilidade por eles.
Na prática, a situação não é tão simples. Devido à alta demanda e a pressa para liberá-las, cerca de 85 mil menores acabaram “esquecidos” pelo governo nos últimos dois anos, mostrou uma reportagem do New York Times, publicada em fevereiro. Como consequência da ausência de fiscalização federal, muitas não tiveram seus direitos salvaguardados pelo Estado e, desamparadas, acabaram em ocupações impróprias.
Medidas ineficazes
Um dos casos denunciados pela publicação foi o da terceirizada da empresa JBS americana, a Packers Sanitation Services, multada em US$1,5 milhão (cerca de R$ 7,2 milhões) por empregar mão de obra infantil imigrante em 13 de seus frigoríficos nos EUA.
O fato levou o presidente Joe Biden a anunciar medidas para reprimir a alta de casos, que incluíram uma força-tarefa entre o DOL e o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHHS, na sigla em inglês) e um apelo ao Congresso para aumentar as penalidades aos empregadores por violações da lei do trabalho infantil.
Parte dos esforços também resultou em uma investigação, em maio, que encontrou 305 menores de idade — incluindo dois meninos de 10 anos, um com permissão para operar fritadeiras — trabalhando em três franquias da rede de fast food McDonald's, em 62 unidades espalhadas por quatro estados. As multas, no total, chegaram a mais de US$ 210 mil (cerca de R$ 1 milhão).
Contudo, as medidas anunciadas não contemplam, por exemplo, mudanças no quadro total de funcionários aptos para realizar mais fiscalizações por todo o país, impossibilitando um controle mais eficaz por parte do governo.
Brechas na lei
A lei federal que rege as normas trabalhistas no país (FLSA, na sigla em inglês), aprovada durante o New Deal (pacote de investimento maciço para recuperação econômica do governo do então presidente Franklin D. Roosevelt, na década de 1930), abrange dois conjuntos gerais de proibições: um proíbe empregadores de contratar menores em trabalhos considerados perigosos e o outro limita as horas que menores de 16 anos podem trabalhar. Cada um dos 50 estados americanos, por sua vez, pode legislar para conceder ainda maior proteção do que a estipulada pelo governo federal — mas nunca menos.
O fato de a lei federal ter quase 100 anos, no entanto, explica a facilidade com que são encontradas brechas que permitem violá-la, como ocorre em muitos dos recentes projetos estaduais, aponta o professor da UCLA.
Um exemplo é o estado de Iowa. A nova lei permite, entre outras coisas, que adolescentes a partir de 14 anos trabalhem em lavanderias industriais e que jovens de 16 anos trabalhem em ocupações perigosas, como escavação, demolição e operação de maquinário motorizado. Também limita a responsabilidade do empregador em casos de lesão, doença ou morte de uma criança no trabalho.
Ao sancioná-la em maio, a governadora republicana Kim Reynolds disse que a medida permitirá que “jovens adultos desenvolvam suas habilidades na força de trabalho” — argumento repetido em outros estados e que, para o professor Sorrilha, é infundado:
— Essas leis são aprovadas como programas educacionais que empresas vão oferecer para os jovens, com o intuito de supostamente melhorar a qualidade de mão de obra e fazer deles indivíduos mais capazes — explica. — É uma relação bastante controversa, pois enquanto o discurso diz que visa à proteção das crianças, em algumas situações isso significa colocá-las em situações insalubres e perigosas.
Também há a questão da cultura muito voltada para o trabalho, com o incentivo dos pais, intrínseca aos americanos. Não é incomum ver em produções dos EUA cenas em que crianças, quando querem algo novo, têm de vender coisas — numa inocente barraquinha de limonada ou de porta em porta com caixas de biscoitos, por exemplo.
— Existe uma relação, ainda que não dita, dessa visão conservadora de que a cultura do trabalho edifica mais o homem do que a própria escola. Essa noção de que os indivíduos vencem trabalhando duro — diz Sorrilha.
O lobby por trás das iniciativas
Desmantelar as leis de trabalho infantil nos EUA, diz o relatório do EPI, é apenas uma "das pontas de uma ampla agenda" promovida por grupos conservadores de políticos, indústrias e associações comerciais, com o intuito de "enfraquecer e eventualmente demolir o papel do governo e das instituições públicas", suprimindo o processo democrático.
Em abril, o Washington Post publicou uma reportagem citando a Foundation for Government Accountability (FGA), um think tank conservador da Flórida, como uma das maiores financiadoras deste movimento em diversos estados americanos. Em suma, a FGA atua oferecendo projetos de lei pré-fabricados para políticos e suporte de pesquisa e lobby para levá-los adiante. O grupo não respondeu a um pedido de comentário.
Além disso, grande parte das leis comumente dialoga com medidas educacionais conservadoras já tomadas em outros estados americanos, como a Flórida do governador republicano Ron DeSantis (pré-candidato à Presidência em 2024) e sua polêmica lei de direitos parentais — apelidada por críticos de "não diga gay" ("don't say gay"). A ideia em comum é que o Estado não se coloque entre pais e filhos e que a decisão de trabalhar ou não seja exclusivamente da família.
— É algo que reflete essa visão de mundo de que as crianças estão indo para o "caminho errado", e uma forma de protegê-las do Estado, tão influenciado pelo que chamam de "cultura woke", o que também é infundado e uma grande besteira — defende o professor.
Fonte: O GLOBO
— Colocar na conta da pandemia é furada, porque esse aumento [no número de violações] começa a ser registrado a partir de 2015. A pandemia acelerou isso, mas, ao mesmo tempo, os EUA vêm com um ciclo de pleno emprego desde o final do governo Obama — diz o professor de História dos EUA da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca, Marcos Sorrilha.
O fato de mais americanos adultos estarem empregados e com salários altos faz com que vagas em determinadas ocupações — como em restaurantes, fábricas e lojas de varejo — não sejam tão facilmente preenchidas. É aí que entra a busca pelos menores de idade, cuja mão de obra é menos qualificada e, por consequência, mais barata.
O cenário se define ao ser somado o fato de que cada vez mais menores imigrantes têm entrado no país desacompanhados — somente em 2022, esse número chegou a 130 mil, mais da metade vindo da Guatemala, segundo o EPI.
— Este país tem um histórico de exploração de trabalhadores imigrantes, especialmente os indocumentados. A demanda empresarial por mão de obra barata está arraigada em nossa economia capitalista de “livre mercado” — explica o professor e diretor de projetos do Centro de Trabalho da Universidade da Califórnia (UCLA), Victor Narro. — Trabalhos que antes iriam para adultos imigrantes indocumentados agora vão para as crianças nessa situação.
Conforme as rígidas e amplamente criticadas regras imigratórias do país — que entraram em vigor no governo Biden em substituição ao Título 42, norma ainda mais severa imposta no governo Trump durante a pandemia —, após se entregarem às autoridades federais, menores imigrantes geralmente são designados a um responsável, idealmente um dos pais ou um familiar — caso contrário, procura-se um tutor para assumir a responsabilidade por eles.
Na prática, a situação não é tão simples. Devido à alta demanda e a pressa para liberá-las, cerca de 85 mil menores acabaram “esquecidos” pelo governo nos últimos dois anos, mostrou uma reportagem do New York Times, publicada em fevereiro. Como consequência da ausência de fiscalização federal, muitas não tiveram seus direitos salvaguardados pelo Estado e, desamparadas, acabaram em ocupações impróprias.
Medidas ineficazes
Um dos casos denunciados pela publicação foi o da terceirizada da empresa JBS americana, a Packers Sanitation Services, multada em US$1,5 milhão (cerca de R$ 7,2 milhões) por empregar mão de obra infantil imigrante em 13 de seus frigoríficos nos EUA.
O fato levou o presidente Joe Biden a anunciar medidas para reprimir a alta de casos, que incluíram uma força-tarefa entre o DOL e o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHHS, na sigla em inglês) e um apelo ao Congresso para aumentar as penalidades aos empregadores por violações da lei do trabalho infantil.
Parte dos esforços também resultou em uma investigação, em maio, que encontrou 305 menores de idade — incluindo dois meninos de 10 anos, um com permissão para operar fritadeiras — trabalhando em três franquias da rede de fast food McDonald's, em 62 unidades espalhadas por quatro estados. As multas, no total, chegaram a mais de US$ 210 mil (cerca de R$ 1 milhão).
Contudo, as medidas anunciadas não contemplam, por exemplo, mudanças no quadro total de funcionários aptos para realizar mais fiscalizações por todo o país, impossibilitando um controle mais eficaz por parte do governo.
Brechas na lei
A lei federal que rege as normas trabalhistas no país (FLSA, na sigla em inglês), aprovada durante o New Deal (pacote de investimento maciço para recuperação econômica do governo do então presidente Franklin D. Roosevelt, na década de 1930), abrange dois conjuntos gerais de proibições: um proíbe empregadores de contratar menores em trabalhos considerados perigosos e o outro limita as horas que menores de 16 anos podem trabalhar. Cada um dos 50 estados americanos, por sua vez, pode legislar para conceder ainda maior proteção do que a estipulada pelo governo federal — mas nunca menos.
O fato de a lei federal ter quase 100 anos, no entanto, explica a facilidade com que são encontradas brechas que permitem violá-la, como ocorre em muitos dos recentes projetos estaduais, aponta o professor da UCLA.
Um exemplo é o estado de Iowa. A nova lei permite, entre outras coisas, que adolescentes a partir de 14 anos trabalhem em lavanderias industriais e que jovens de 16 anos trabalhem em ocupações perigosas, como escavação, demolição e operação de maquinário motorizado. Também limita a responsabilidade do empregador em casos de lesão, doença ou morte de uma criança no trabalho.
Ao sancioná-la em maio, a governadora republicana Kim Reynolds disse que a medida permitirá que “jovens adultos desenvolvam suas habilidades na força de trabalho” — argumento repetido em outros estados e que, para o professor Sorrilha, é infundado:
— Essas leis são aprovadas como programas educacionais que empresas vão oferecer para os jovens, com o intuito de supostamente melhorar a qualidade de mão de obra e fazer deles indivíduos mais capazes — explica. — É uma relação bastante controversa, pois enquanto o discurso diz que visa à proteção das crianças, em algumas situações isso significa colocá-las em situações insalubres e perigosas.
Também há a questão da cultura muito voltada para o trabalho, com o incentivo dos pais, intrínseca aos americanos. Não é incomum ver em produções dos EUA cenas em que crianças, quando querem algo novo, têm de vender coisas — numa inocente barraquinha de limonada ou de porta em porta com caixas de biscoitos, por exemplo.
— Existe uma relação, ainda que não dita, dessa visão conservadora de que a cultura do trabalho edifica mais o homem do que a própria escola. Essa noção de que os indivíduos vencem trabalhando duro — diz Sorrilha.
O lobby por trás das iniciativas
Desmantelar as leis de trabalho infantil nos EUA, diz o relatório do EPI, é apenas uma "das pontas de uma ampla agenda" promovida por grupos conservadores de políticos, indústrias e associações comerciais, com o intuito de "enfraquecer e eventualmente demolir o papel do governo e das instituições públicas", suprimindo o processo democrático.
Em abril, o Washington Post publicou uma reportagem citando a Foundation for Government Accountability (FGA), um think tank conservador da Flórida, como uma das maiores financiadoras deste movimento em diversos estados americanos. Em suma, a FGA atua oferecendo projetos de lei pré-fabricados para políticos e suporte de pesquisa e lobby para levá-los adiante. O grupo não respondeu a um pedido de comentário.
Além disso, grande parte das leis comumente dialoga com medidas educacionais conservadoras já tomadas em outros estados americanos, como a Flórida do governador republicano Ron DeSantis (pré-candidato à Presidência em 2024) e sua polêmica lei de direitos parentais — apelidada por críticos de "não diga gay" ("don't say gay"). A ideia em comum é que o Estado não se coloque entre pais e filhos e que a decisão de trabalhar ou não seja exclusivamente da família.
— É algo que reflete essa visão de mundo de que as crianças estão indo para o "caminho errado", e uma forma de protegê-las do Estado, tão influenciado pelo que chamam de "cultura woke", o que também é infundado e uma grande besteira — defende o professor.
Fonte: O GLOBO
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