Municípios, estados e governo federal terão de apresentar planos e diagnósticos precisos sobre o tema, em um prazo de 120 dias, de acordo com medida cautelar do ministro Alexandre de Moraes

Desafio conhecido e crescente no país, a adoção de políticas públicas efetivas para lidar com a população em situação de rua passa a ser obrigatória com uma nova decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). 

Municípios, estados e o próprio governo federal terão de apresentar planos e diagnósticos precisos sobre o tema, em um prazo de 120 dias, de acordo com medida cautelar divulgada na terça-feira. A decisão foi celebrada por especialistas como necessária, e também sintomática da omissão de sucessivas gestões de governantes.

— É paradigmática. Reconhece que União, estados e municípios são omissos no cumprimento dos direitos da população em situação de rua. E exige ações concretas — diz Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

A decisão vem à tona em um momento de explosão da população em situação de rua no país, acentuada desde a pandemia. E em meio a denúncias de retirada de pertences de moradores das ruas em cidades como São Paulo e Belo Horizonte, além de operações de remoção.

A operação mais polêmica foi em São Paulo, no início do mês, quando agentes da Guarda Civil Metropolitana, da Polícia Militar e da Polícia Civil deslocaram a cracolândia do Centro da capital paulista para debaixo da Ponte Estaiadinha, no Bom Retiro. Os agentes escoltaram o grupo até a Marginal Tietê. Algumas horas depois, o grupo voltou ao endereço anterior.

A decisão de Moraes proíbe “o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua”.

— É uma medida histórica, que vai na contramão do que os municípios estão fazendo. Estabelece um prazo para uma política nacional, municipal e estadual articulada. E algumas determinações valem de imediato, como a de suspensão da remoção de pessoas e retirada de pertences. 

Além de reforçar a legislação aprovada em relação à aporofobia e arquitetura hostil. Isso vai balizar e possibilitar a pressão da sociedade civil, das entidades e da própria população em situação de rua — comemorou o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo.

Pressão social

A decisão de Moraes foi dada em uma ação apresentada pelo PSOL, Rede e Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Para o padre Lancellotti, pesou o que Moraes ouviu em uma audiência pública, em novembro, com entidades que representam a população de rua. Cidades, estados e o governo federal terão de apresentar soluções efetivas.

— O prazo (120 dias) é relativamente curto porque não é para ninguém inventar a roda, mas dizer quais são os planos que já existem e como pretendem concretizá-los, com quais dados, como vão integrar políticas, treinar assistentes sociais para atendimento dessas populações. 

Força uma resposta dos governantes, que terão de se comprometer com o que apresentarem. E não é nada impossível. Quem responder que não tem (políticas para a população em situação de rua), o que não seria muito crível, terá de assumir isso. E pensar em reestruturações internas — explica Bianca.

Duas determinações, em especial, demandarão esforços considerados básicos, mas não atendidos integralmente por estados e municípios. O primeiro é um diagnóstico detalhado “com a indicação do quantitativo de pessoas em situação de rua por área geográfica, quantidade e local das vagas de abrigo e de capacidade de fornecimento de alimentação”. Na decisão, Moraes cita o Censo realizado na capital paulista em 2019.

“Para além de exemplo para futuros e necessários censos oficiais financiados pelo Governo Federal, é um parâmetro inicial importante para a compreensão de elementos que compõem os três eixos (evitar a entrada nas ruas; garantir direitos enquanto o indivíduo está em situação de rua; e promover condições para a saída das ruas)”, destaca.

No âmbito nacional, há um estudo do Ipea, também citado na medida, que em 2022 estimou em 281.472 pessoas a população de rua no país. O número expõe um aumento de 38% em relação a 2019, e de 211% na última década. Porcentagem bastante desproporcional ao aumento de 11% da população brasileira em período similar estimado pelo IBGE.

O texto da medida cautelar enfatiza a limitação desse levantamento, uma vez que as fontes usadas (Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, Registros Mensais de Atendimento socioassistencial e Censo Suas) não incluem parte dessa população, que não se beneficia de nenhuma prestação assistencial ou tem documentos de identificação. 

“Nessa conjuntura, não existe um mapeamento oficial da população em situação de rua no país, requisito essencial para o desenvolvimento de políticas públicas”, destaca a decisão.

A medida cautelar estipula ainda a aplicação da Política Nacional para a População em Situação de rua a todos os estados e municípios brasileiros, “ainda que não tenha ocorrido sua adesão formal à política nacional”.

O programa foi criado a partir de um decreto de 2009 com propostas de atenção a esse grupo. Mas até 2020, apenas o Distrito Federal, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e Pernambuco tinham aderido, além de 15 municípios: São Paul, Goiânia, Curitiba, Maceió, Porto Alegre, Florianópolis , Rio Branco, Recife, Fortaleza, Uberaba (MG), Passos (MG), Novo Hamburgo (RS), Foz do Iguaçu (PR), Serra (ES) e Juiz de Fora (MG). Na decisão, Moraes destaca que caberá ao governo federal, nos 120 dias de prazo, formular um plano de ação e monitoramento para a implementação dessa política nacional.

Outro ponto destacado por especialistas foi que a medida determina o estabelecimento de meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse, relacionando o impacto disso com o tamanho da população de rua.

— É muito importante limitar ou minimamente ter maior controle sobre políticas de reintegração de posse, despejos, remoções. Sabemos que isso tem impactado no aumento dessa população em situação de rua. Não podemos desconectar isso da crise habitacional que vivemos há anos, e que piorou muito na pandemia — diz Aluízio Marino, coordenador do LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

Violações e denúncias

Caberá agora, afirma, aguardar a repercussão da medida junto aos governos:

— Claro que nada é do dia para a noite, principalmente quando falamos em grandes cidades, com escala complexa de população em situação de rua. Mas será preciso empoderar a sociedade civil, em especial a própria população em situação de rua, que já tem suas formas de organização, em fóruns e conselhos.

Para Bianca , será necessária também atenção a eventuais denúncias de violação da decisão do STF:

— Agora não seria mais uma denúncia apenas ao Judiciário paulista, por exemplo. Mas uma reclamação constitucional direta ao Supremo.

Questionadas pelo GLOBO, prefeituras como as de São Paulo, Curitiba, Fortaleza e o governo do Distrito Federal informaram ainda não ter recebido notificação formal do STF sobre a nova decisão.

Mas disseram estar em cumprimento com a medida, com a oferta de vagas de acolhimento, ações de reinserção familiar e de capacitação profissional. Além de SP, as prefeituras de Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza e o governo do Distrito Federal afirmam já ter realizado censos da população em situação de rua.

Sobre a retirada de pertences, a prefeitura de São Paulo afirmou, por meio da Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), que durante as ações de zeladoria são retirados objetos não configurados como pertences pessoais, “tais como pedaços de madeira, paus, colchões grandes, cadeiras, camas, sofás, barracas montadas e lonas para montar tendas”.

A ação acontece, diz a pasta, de acordo com decreto municipal que proíbe ocupação que caracterize uso permanente em local público, “principalmente, quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos”.

Já a prefeitura de Belo Horizonte disse que nos dias de baixas temperaturas as equipes da prefeitura “utilizam protocolos específicos de proteção dos moradores em relação ao frio que incluem a permanência da montagem dos abrigos provisórios durante o dia e a noite”.

Segundo a pasta, “é garantida a posse dos pertences pessoais, sendo assegurado ao cidadão fazer a separação, a desmontagem, o recolhimento e a guarda dos objetos que possa portar consigo em seus deslocamentos, admitindo o auxílio de um veículo de tração humana de pequeno porte".

Os materiais identificados pelo cidadão como inservíveis são, afirma,, recolhidos pela SLU. Já os materiais que não são passíveis de serem carregados pelo cidadão, como sofá e cadeira, são levados para o depósito da Prefeitura e um auto de apreensão é emitido, informa a prefeitura, acrescentando que "os materiais podem ser reavidos com a apresentação do auto de apreensão".


Fonte: O GLOBO