História dos quatro homens encontrados em leme de navio que chegou ao ES chama a atenção para drama no país de origem e também para obstáculos de nigerianos que vivem aqui

Além de expor o drama de um país que vive uma crise econômica, política, de insegurança alimentar e de violência, com as ações do grupo extremista Boko Haram, o resgate de quatro nigerianos encontrados no leme de um navio cargueiro que chegou ao Porto de Vitória (ES) chama a atenção para a comunidade nigeriana que vive no Brasil - e que não está alheia a desafios comuns a muitos dos migrantes que buscam uma nova vida por aqui.

— A maior dificuldade da comunidade nigeriana no Brasil é o emprego — diz Emeka Ujor, presidente da Comunidade Unificada Nigeriana no Brasil, associação baseada em São Paulo. — A língua certamente é um obstáculo, mas não só. Não é fácil encontrar trabalho. E os nigerianos que buscam trabalhar por conta própria, com o comércio de mercadorias da África, não conseguem, a burocracia é grande.

Cerca de dez mil nigerianos vivem no Brasil, diz Ujor. A maioria está em São Paulo. É uma comunidade que começou a vir ao Brasil há mais de 40 anos, afirma, para estudar.

— No passado havia uma boa relação de intercâmbio entre Brasil e Nigéria. Temos aqui muitos médicos, engenheiros, advogados, dentistas, arquitetos, até jogadores de futebol - afirma ele, que chegou ao Brasil há mais de 30 anos.

Para ele, ainda há muito desconhecimento e também falta de apoio para os nigerianos aqui.

— A comunidade é grande, mas precisamos de apoio das pessoas, das empresas. O Brasil recebe refugiados, mas não necessariamente os acolhe. É um país com muitas semelhanças com a Nigéria. Mas mesmo aqui os africanos passam necessidade. O Brasil vive na África, mas a África não vive no Brasil — lamenta.

Ujor diz não ter detalhes sobre a identidade ou as motivações dos quatro nigerianos que viajaram 14 dias escondidos no leme do navio cargueiro e foram resgatados na segunda-feira. Mas, para ele, o governo brasileiro poderia oferecer a possibilidade de acolhimento no país, assim como na crise humanitária com os ucranianos, lembra.

— Quando não há emprego, não há serviços sociais oferecidos aos cidadãos, eles são obrigados a sobreviver por conta própria, e arriscar a vida para buscar algo melhor em outro país, como pode ter acontecido (no ES) — afirma. — As motivações de saída ainda não são claras. Mas se eles estão fugindo de alguma situação de insegurança religiosa ou política, talvez não possam voltar à Nigéria.

Ujor explica que os problemas enfrentados na Nigéria hoje perpassam várias áreas: economia, política, religião, segurança. A questão religiosa é crítica: instituído há mais de 20 anos, o grupo extremista Boko Haram (que em língua hausa, a mais falada no Norte do país, significa "a educação ocidental é pecaminosa") pregava a criação de uma República Islâmica na Nigéria e que todos fossem "muçulmanos na marra". O país, explica, tem representantes de três religiões: afro (ou o candomblé, no Brasil). cristã e muçulmana.

— De alguns anos para cá, os desentendimentos aumentaram com terroristas que invadiram o Norte do país e começaram a aterrorizar toda a região — conta Ujor.

Sequestro e terror

Em 2014, gerou comoção mundial o sequestro de 276 meninas, estudantes na região de Chibok, por integrantes do Boko Haram. Desde então, a violência se espalhou pela fronteira nordeste da Nigéria e também afetou populações em Camarões, Chade e Níger, criando um conflito regional que se transformou em emergência humanitária.

— A crise na Nigéria e na maioria dos países mais populosos no mundo reside no fato da desigualdade ter se espalhado e nunca ter sido vencida — diz Luís Renato Vedovato, professor de Direito Internacional e Migração pela Unicamp. — Na Nigéria, isso acontece com um viés que mistura religião, como é o caso do Boko Haram. 

Esse discurso contra o direito calcado numa ideia do ódio, da discriminação sobre a pauta religiosa, se espalhou por lá. É uma crise que ainda vai perdurar e tem suas origens no distanciamento da ideia de que a solução que a sociedade pode ter de melhoria é trazida pelo direito. Ali, a solução tem sido buscada com base em extremismos.

De acordo com dados do Acnur, a agência da ONU para os refugiados, há cerca de 3,2 milhões de nigerianos deslocados, sendo 2,9 milhões deslocados internamente no nordeste da Nigéria, mais de 684.000 deslocados internos nos Camarões, Chade e Níger e 304.000 refugiados nos quatro países.

— Toda vez que temos um cenário de violência, vemos um deslocamento de pessoas, porque o coração dos problemas que leva à violência está numa tentativa de exclusão. E essas pessoas acabam excluídas e perseguidas. O cenário se torna tão imprevisível e impossível de conviver que as pessoas precisam sair — diz Vedovato.

À violência trazida pelo Boko Haram somou-se outra crise, de insegurança alimentar, acentuada pela fome e desnutrição. Comunidades que tradicionalmente dependem da agricultura e do pastoreio enfrentam pobreza crônica, epidemias recorrentes e acesso limitado a serviços básicos, alertam frentes de ajuda humanitária.

— As demais crises são sempre aprofundadas quando temos um problema de deslocamento de pessoas — afirma o professor. —Esse agravamento vai levar especialmente esses grupos vulneráveis que são alvos dos discursos de ódios a verem suas crises, como a de insegurança alimentar, piorarem.


Fonte: O GLOBO