José Luiz da Costa, especialista em toxicologia, fala sobre desafios abertos diante do aumento de uso desse entorpecente e o que se sabe sobre a família da droga K9

Baixo custo, amplo acesso e alta potência. Eis três características preocupantes acerca dos chamados canabinoides sintéticos, nome oficial das drogas K (K2,K4, K9 e spice, conforme ficaram conhecidas após os relatos de uso). 

No Brasil, ainda há dificuldade de determinar, por meio de laudos laboratoriais, a presença desse tipo de entorpecente, em tempo real, no organismo. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a indicação de que aquela pessoa pode estar sob efeito de uma droga desse gênero é realizada por meio de perguntas ao usuário, quando possível, e com observações do especialista médico no momento do atendimento.

No laboratório da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), porém, há outra possibilidade de análise: o local é equipado para realizar um exame toxicológico em tempo real do usuário, para saber se ele está sob efeito da droga no aqui e agora. 

O estudo ocorre meio de amostras da saliva, sangue e urina. Trata-se de um teste desenvolvido pela própria Unicamp, conta José Luiz da Costa, coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox de Campinas). 

Em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, desde o ano passado, o laboratório abarca um estudo de drogas K e deve fechar um acordo com a prefeitura da cidade de São Paulo para avaliar as amostras da metrópole, onde já foram descritos casos suspeitos de morte por uso de substâncias sintéticas do tipo. 

Ao GLOBO, o especialista falou sobre as dúvidas que ainda cercam a droga e as semelhanças e diferenças entre esse tipo de entorpecente e a maconha.

O que são exatamente as drogas K? Elas são parecidas com algum outro tipo de entorpecente mais conhecido?

A semelhança que essa droga tem é com o THC (tetra-hidrocanabinol, o princípio ativo da maconha). Ela atua no cérebro e na sua células no mesmo lugar que o THC atua. A semelhança acaba aí. Porque os canabinoides sintéticos, que são os nomes corretos das drogas K, são dezenas, centenas de vezes mais potentes que o THC. Do ponto de vista molecular, quer dizer que ele liga nesse receptor da célula com uma intensidade muito maior, o que o faz causar muito mais efeitos que a maconha causaria.

O usuário tem uma sensação anestésica?
É o efeito de usar maconha multiplicado por 100, 200 vezes.

Esse entorpecente já teve algum uso farmacêutico?
Estamos na sétima geração dos canabinoides sintéticos. Isso quer dizer que a estrutura dessas drogas, falando da química, foi mudando ao longo da última década. Já é um material completamente diferente do que tínhamos no começo. Se voltarmos na primeira geração de canabinoides sintéticos, que começaram a ser usados como drogas (entorpecentes), praticamente todos vieram da indústria farmacêutica. 

Porque a indústria estava fazendo drogas? Não. Estavam estudando como funcionava o sistema endocanabinoide, mas no lugar de usar THC eles sintetizam compostos que acionavam esse sistema no cérebro de ratos, por exemplo, e assim mapeavam o efeito no cérebro. Só que (esse material) passou a ser usado como droga. Esses novos canabinoides sintéticos, na rua hoje em dia, não tem produção na indústria farmacêutica.

Por que é tão viciante?

Temos que tomar cuidado ao dizer que é tão viciante. Não há estudos clínicos que tragam essa confirmação. A própria dependência da cannabis é muito controversa. Não há consenso sobre isso. Do canabinoide sintético menos ainda, pois são compostos muito, muito, novos. Não sabemos dizer ainda se causa dependência, à luz dos achados científicos atuais.

Ainda temos poucos laudos que confirmem o uso da droga no país?

Sim, é pouco. Poucos laboratórios conseguem testar. Pode ser que não tenhamos muitas mortes por conta do uso dessa droga porque não testamos muito. Como saberemos o número sem fazer essas análises? Aqui na Unicamp não fazemos o teste de uso de drogas K no fio de cabelo (como ocorre na cracolândia), porque ele só mostra se algum dia a pessoa usou aquela droga, não se estava sob o efeito. Aqui, por outro lado, analisamos o sangue, a urina e a saliva dessas pessoas. Leva por volta de uma hora para sair o material.

Quais são os tipos de drogas K que existem?

Hoje em dia já existem mais de 100 tipos de canabinoides sintéticos diferentes. A classificação em K2, K9, "Kqualquer coisa", para mim é uma classificação empírica, pois quem está na rua não sabe o que é efetivamente aquilo. Não há como a pessoa determinar que está comprando um K2. Ontem o que foi chamado de K2 pode não ser o mesmo material de hoje. O que vemos muito nessas drogas é a variação intensa de composição. São diferentes substâncias químicas que fazem a mesma coisa no organismo.

O Conselho Federal de Farmácia e a Sociedade Brasileira de Toxicologia se declararam contra o termo maconha sintética, por quê?

Sou um dos signatários desse documento. Maconha é o nome popular da droga produzida a partir da planta cannabis sativa e tem como princípio ativo o THC. É sempre uma droga de origem natural, pois sempre vem da planta. Os canabinoides sintéticos, apesar de serem fumados, e estarem em plantas, eles não vêm naturalmente de uma planta. 

Aquilo é uma planta seca (sálvia-comum, orégano) na qual o traficante borrifou a droga em cima. Não temos que misturar as coisas. Os dois atuam no mesmo receptor do cérebro? Sim. Mas não existe intoxicação aguda, fatal, com maconha. Entenda, não morre de intoxicação aguda, mas pode bater o carro sob efeito de maconha, pode precipitar um suicídio diante de uma crise esquizofrênica com maconha, há vários riscos relacionados, não é uma panaceia. Contudo com canabinoides sintéticos há mortes, sim.

Como ocorrem essas mortes em decorrência das drogas K?

São duas coisas possíveis: taquicardia muito intensa e depressão respiratória. Se a pessoa errou na dose, for muito alta, a pessoa vai morrer por efeito dos canabinoides sintéticos.

O que ainda precisamos descobrir em relação a essa categoria de drogas?

É preciso acompanhar esses casos (de uso e morte) mais de perto. Não são muitas mortes em decorrência do uso dessas drogas. Elas matam, sim, mas a cocaína mata mais, o número de overdoses são absurdamente maiores. Só que não podemos deixar isso pra lá até que vire uma bola de neve e não consigamos resolver.

 É preciso educar e informar as pessoas, explicar o que é, mostrar a diferença de maconha. É algo longe de defender o uso de maconha, mas precisamos dizer que são coisas muito diferentes. Podemos trabalhar com medidas desse tipo, é preciso acompanhar essas pessoas. Mais importante que fazer análise de fio de cabelo é fazer acompanhamento com assistente social e outros profissionais de saúde.


Fonte: O GLOBO