Cacique Bedjai Txucarramãe, que liderou a operação de resgate a convite da Funai, conta ao GLOBO como foi chegar ao local dos destroços do acidente que matou 154 pessoas

Boa parte dos destroços do Boeing 737 da GOL derrubado pelo jato Legacy, em 2006, ainda continua espalhada pela Terra Indígena Capoto-Jarina, próxima ao município de Peixoto de Azevedo, ao norte de Mato Grosso, onde vive a comunidade Mebêngôkre (kayapó). 

Além do trágico acidente , que matou as 154 pessoas que estavam a bordo, danos ambientais, materiais e imateriais decorrentes da queda do avião levaram a companhia aérea a indenizar os indígenas em R$ 4 milhões, por se tratar agora de uma área sagrada, conhecida como "casa ou cidade dos espíritos" ou um “mekaron nhyrunkwa”, segundo a cosmologia da etnia. O governo dos Estados Unidos negou a extradição dos pilotos que conduziam o jato Legacy.

O acordo extrajudicial, pago dez anos depois, em 2016, foi mediado pelo Ministério Público Federal (MPF) em reuniões realizadas entre representantes da GOL e lideranças indígenas, que buscaram reparação pelo fato de a área afetada pelo acidente - cerca de pouco mais de 1 mil km² - tornar-se imprópria para o uso, por razões de ordem religiosa e cultural.

Um dos primeiros a chegar ao local do acidente, o cacique Bedjai Txucarramãe recorda como foi difícil conduzir um grupo de 20 indígenas e indigenistas da Funai por dois dias de caminhada em mata fechada até localizar os primeiros destroços.

— Nós chegamos junto com o Exército. Mas eles foram pelo ar, nós pela mata. Só tinha um GPS na mão, usado pelo pessoal da Funai, e nada mais. Foi um resgate muito difícil e triste, pois assim que chegamos ajudamos os soldados a colocarem os restos mortais dentro de um saco, foi pesado, mas ficamos por lá trabalhando 30 dias — afirmou o cacique, hoje com 82 anos, ao GLOBO.

Bedjai explica que crenças e tradições do povo Mebêngôkre fizeram da área uma casa dos espíritos e, por isso, é considerada sagrada por seus habitantes.

— Ninguém vai lá à toa. Ali não podemos caçar, fazer roça, não vamos pescar. É área sagrada, que nós respeitamos os espíritos que moram lá. Fizemos nosso trabalho, que foi ajudar o Exército a retirar o que sobrou dos corpos. Falei para pessoal meu: não mexam em nada que seja dos passageiros, bolsa, mochila, roupa, nada nos pertence — relembra Bedjai, que é sobrinho do cacique Raoni.

A negociação foi conduzida pelo procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis, na época lotado em Barra do Garças (MT), que pediu uma perícia antropológica dos danos causados ao povo Kayapó. 

Uma comissão foi formada para debater os impactos ambientais e espirituais provocados pela queda do avião na terra indígena, já que os advogados da empresa alegaram que a retirada dos destroços era inviável em razão dos custos e da logística necessária, além de possíveis danos ambientais que seriam causados com a retirada dos destroços, localizados numa área de floresta onde o município mais próximo é Peixoto de Azevedo, a mais de 600 km da capital Cuiabá.

No acordo, a GOL se dispôs a pagar o dinheiro ao Instituto Raoni, que confirmou ao GLOBO o recebimento da indenização e afirmou que usou o dinheiro em benefícios em suas aldeias e comunidades. Procurada, a companhia aérea não quis se manifestar.

Relembre o caso

Na maior tragédia da aviação brasileira até então, um jato Legacy se chocou num avião da Gol Linhas Aéreas com 154 pessoas a bordo, em 29 de setembro de 2006. No fim da tarde do dia 29 daquele mês, uma sexta-feira, os americanos Jan Paul Paladino e Joseph Lepore pilotavam o jato, da empresa Excel Air, que acabou batendo na asa esquerda do Boeing 737-800.

Após quase 24 horas de buscas, os destroços da aeronave foram encontrados numa área de mata fechada da Floresta Amazônica. Na colisão, o Legacy (fabricado pela Embraer) teve parte de uma das asas e a cauda danificadas, mas conseguiu fazer um pouso de emergência num campo de provas da Força Aérea Brasileira (FAB), na região de Alta Floresta.

Entre as vítimas da tragédia, estava um bebê de 11 meses que viajava com a mãe. No avião também estavam outras quatro crianças, de até 12 anos, dois cientistas da Fundação Oswaldo Cruz, médicos, funcionários do Inmetro e um grupo de amigos capixabas que viajaram para pescar.


Fonte: O GLOBO