Qualquer pessoa com o boletim de ocorrência pode cadastrar o desaparecimento. A taxa de desaparecimento no estado é de 46,3 para cada 100 mil habitantes
No Acre, centenas de famílias sofrem a dor de não saber o que aconteceu com pessoas desaparecidas. Os casos de desaparecimento no estado têm aumentado ano a ano e, com base nisso, tem levantado o debate sobre a atenção ao tema.
Nesta quinta-feira (20), dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, mostram que os registros de desaparecidos no estado aumentaram em 57%. O levantamento aponta que em 2022 foram registrados 384 desaparecimentos, enquanto em 2021 esse número era de 244. Com relação às taxas a cada 100 mil habitantes, o índice é 46,3.
As informações sobre pessoas localizadas foram fornecidas por cada estado. No entanto, não foi possível apurar como o registro é feito: qual o documento de base (por exemplo, boletim de ocorrência); se diz respeito a pessoas localizadas vivas ou mortas; se o encontro está ou não vinculado a eventos de desaparecimento previamente reportados; a que ano se refere o desaparecimento eventualmente antes reportado, ou seja, em que ano essa pessoa foi dada como desaparecida. Em 2022, 15 pessoas foram encontradas e em 2021 apenas nove foram achadas.
Assim, os registros de pessoas localizadas nos anos de 2021 e 2022 não correspondem, necessariamente, aos casos de pessoas desaparecidas registrados no referido período. A taxa de registros de desaparecimentos a cada 100 mil habitantes no estado é maior do que a nacional, que é de 32.
“Saudade: essa dor pode acabar” dá visibilidade ao drama vivenciado pelas famílias — Foto: Reprodução/MP-AC
Campanha
No começo deste ano, o Ministério Público do Acre (MP-AC) começou a tomar algumas medidas como forma de acompanhar esses casos mais de perto. Em janeiro, o órgão lançou a campanha “Saudade: essa dor pode acabar”, para dar visibilidade ao drama vivenciado pelas famílias, sensibilizar a sociedade sobre o problema, além de divulgar informações sobre como proceder diante dessas situações.
Desde 2017 que o MP-AC integra o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid), criado a partir de um acordo de cooperação técnica firmado entre o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), que desenvolve o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID).
No MP-AC, o Sinalid é gerenciado pelo Núcleo de Apoio Técnico (NAT), que é coordenado pela promotora de Justiça Marcela Cristina Ozório.
Em fevereiro deste ano, um mês após lançar a campanha, o MP conseguiu encontrar Alcebíades de Brito, de 74 anos, que perambulava pelas ruas do município de Plácido de Castro, no interior do estado, e procurou abrigo na Delegacia de Polícia e foi encaminhado ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Sem documentos, apresentando confusão mental e sem saber informar sobre o contato de parentes ou conhecidos, o idoso foi levado para um abrigo pelo Creas e seu caso foi encaminhado à Promotoria de Justiça de Plácido de Castro, que solicitou apoio do NAT para encontrar os familiares. Ele estava desaparecido há 25 anos.
A campanha busca conscientizar a população sobre a importância de se comunicar com as autoridades competentes quando se tem informações sobre pessoas desaparecidas. Através da divulgação de informações e fotos de pessoas desaparecidas no perfil oficial do MP, a campanha busca ampliar o alcance da busca e aumentar as chances de encontrar essas pessoas.
Alcebíades de Brito, de 74 anos, foi um os encontrados durante campanha do MP-AC — Foto: Asscom/MP-AC
Banco de dados
Agora, como uma forma de reforçar ainda mais essas buscas e chamar atenção para esses índices, o MP disponibiliza um canal para que o cidadão possa fazer o registro de pessoas desaparecidas. A novidade está disponível no endereço eletrônico.
Para fazer a comunicação, basta ter em mãos o boletim de ocorrência em que o desaparecimento tenha sido comunicado.
“O MP faz parte de um programa que é nacional, que é chamado Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), que criou um sistema, que é interligado entre os estados, que chama Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid).
Em grande parte do país, são os MPs que fazem a alimentação do sistema é o próprio MP, então recebemos essas informações a partir de registro da ocorrência policial e fazemos a inserção dentro do sistema, o que criamos, é que customizamos esse sistema nacional para criar a possibilidade do cidadão comum ele mesmo faça a inserção dessas informações dentro do sistema nacional sem precisar que os servidores do MP fazem essa ponte. Estamos trabalhando para dar maior agilidade a essa informação”. explica a promotora Marcela.
Com isso, qualquer cidadão comum que tenha registrado um boletim de ocorrência de desaparecimento consegue inserir esses dados no sistema. Porém, é importante destacar que esse sistema não substitui a investigação da Polícia Civil, apenas cria um fluxo e um banco de dados para esses perfis, que podem ser acessados por órgãos de outros estados.
“Quando a pessoa registra o boletim na delegacia, ela está comunicando uma situação que pode ser criminosa ou não, aquele desaparecimento pode ser fruto de um crime e a polícia precisa iniciar os seus trabalhos. O que o MP vai fazer é tentar auxiliar esse trabalho de localização dessa pessoa", diz.
A promotora explica ainda que assim é possível fazer um levantamento de informações no Acre e uma checagem em campo, através do NAT.
"Agora com o sistema nacional, os MPs de outros estados podem receber uma informação que uma pessoa foi localizada lá e podem fazer uma busca das características dessa pessoa dentro do sistema nacional. Porque, às vezes, a pessoa é localizada em outro estado sem documentação ou desorientada. Enfim, estamos no início da inserção de informações nesse sistema e começando o trabalho de divulgação para criar uma teia de relacionamentos entre MP, Polícia Civil, para troca de informações no tocante aos casos de desaparecidos”, explica a coordenadora.
Para a promotora Marcela, esse canal não é só uma forma de agilizar, mas de dar comodidade às famílias dessas pessoas que desapareceram.
“O canal hoje ele é uma comodidade para que a pessoa não precise ir ao MP presencialmente pedir esse auxílio. A gente já recebe via sistema e o que a gente precisa, a partir de agora, é ampliar a busca por essas informações."
Criar fluxo
Com esse canal, vai ser possível ainda iniciar a criação de um fluxo e um local onde reúne informações sobre esses casos. Ao acessar o endereço eletrônico, o usuário será direcionado para a página do Sinalid. Ao escolher o Acre no mapa do Brasil, aparecerá um formulário, que deverá ser preenchido com os dados solicitados.
“Na verdade, é um banco de dados, que vai abrigar essas informações, o que a gente precisa saber é o que cada instituição fez, se na polícia teve instauração de inquérito; se no MP houve instauração de procedimento para apurar. Como núcleo de apoio técnico, dou apoio para buscar esses dados, mas não tenho possibilidade de instaurar um procedimento para localizar pessoas, porque meu núcleo é um núcleo de apoio", explica.
A ideia, segundo ela, é avançar e, futuramente, abrir esse sistema para portas de entradas em hospitais e rede de saúde. "Para que possam comunicar dentro do sistema também o aparecimento de pessoas que não estejam identificadas, porque o sistema é para pessoas desaparecidas ou sem identificação, então pode ser que nas redes de saúde, tenhamos pessoas que estejam lá sem identificação e que sejam desaparecidas para as famílias. É um fluxo que, a cada dia, estamos ampliando essa campanha para que abarque outras instituições e que colabore com a família e sociedade na localização dessas pessoas," afirma.
Polícia criou grupo especial para investigar casos de desaparecimentos em Cruzeiro do Sul em 2019 — Foto: Arquivo pessoal
Aumento dos casos e medidas
Em 2019, por causa do alto número de desaparecidos no Vale do Juruá, a Polícia Civil chegou a anunciar a criaria um grupo especial, criado para investigar os sumiços, porém, o projeto nunca saiu do papel. Atualmente, a Polícia Civil diz que tem acompanhado os casos, que aumentam ano a ano e garantiu criar núcleos específicos em cada delegacia para acompanhar as investigações mais a fundo.
O delegado-geral, Henrique Maciel, disse que alguns planejamentos estão sendo traçados. "Hoje o departamento de inteligência está supervisionando as investigações acerca dos registros de desaparecimento de pessoas. A partir de agosto vamos implementar um núcleo p esses registros no âmbito Estadual (todas as delegacias da capital e do interior).
'A gente sobrevive'
Algumas famílias não conseguem respostas e passam, muitas vezes, anos sem saber o que de fato aconteceu. É o caso da técnica em enfermagem Maria da Glória. O filho dela, Ítalo Souza da Costa, está desaparecido desde o dia 28 de abril deste ano após sair da casa da tia no bairro Remanso em Cruzeiro do Sul, no interior do Acre.
Costa saiu de casa no bairro Telégrafo na noite do dia 27 de abril, por volta das 20 horas, e foi para a casa da irmã dela, onde ficou ingerindo bebida alcoólica com a tia e o marido dela até a madrugada. Depois disso, a informação repassada à família é que o rapaz saiu dizendo que logo voltaria, mas não deu mais notícias. Ele deixou para trás o celular ou a carteira.
Os meses sem saber o que de fato aconteceu com o filho deixam Maria da Glória com a sensação de sobrevivência.
"Não consegui ter nenhuma informação. Não tive resposta até agora. A palavra correta seria sobreviver, porque isso não é vida. Era meu único filho e tudo que eu podia fazer, que consigo fazer, que é andar, ir atrás, eu continuo fazendo. Mas, infelizmente foge do meu controle", lamenta.
'Nada supre o vazio'
Quem vive essa angústia há mais anos é a família de Rairleny Ganum da Silva, que sumiu junto com o idoso Arnaldo Reis Praxedes no dia 2 de junho de 2016 em Rio Branco. A estudante e o idoso tinham um relacionamento, inclusive, eram pais de um menino de 4 anos, na época. No dia do sumiço, Praxedes foi até a casa da namorada buscá-la para fazer uma faxina na casa dele. Do bairro Eldorado, onde Rairleny morava com a família, o idoso levou a namorada, a mãe dela e a cunhada, Rairla Ganum, até o Centro da capital acreana. Rarifa e Rairla ficaram em uma loja e Praxedes saiu com Rairleny para a casa dele.
Essa foi a última vez que o casal foi visto. No dia seguinte, 3 de junho, o veículo de Praxedes foi encontrado incendiado no Ramal do Pica Pau, na Estrada do Amapá. Na época, a polícia falou que a casa do aposentado foi invadida e dois televisores furtados.
Rarifa Nunes acredita que a filha Rairleny Ganum está viva e espera ela voltar para casa após cinco anos — Foto: Arquivo pessoal
Em junho de 2021, a mãe da jovem, Rarifa Nunes, contou ao g1 acreditar que a filha ainda estivesse viva. Na época, fazia cinco anos de desaparecimento dela.
"Para mim, ela está viva e espero ela voltar. Não sei o que aconteceu. Quero uma resposta, porque não estão procurando ela. Tem alguém no cativeiro com ela, alguém está segurando ela", disse emocionada Rarifa naquela época.
Atualmente a mãe da jovem tem 56 anos e cuida do filho de Rairleny, que tem 11 anos. A outra neta é criada pelo pai e tem nove anos. Rairla Ganum, irmã da jovem desaparecida, conta que em todos estes anos a mãe tem se apoiado na fé e que os filhos, muitas vezes choram com saudade da mãe.
"Os filhos dela choram, sentem saudade da mãe deles. É até difícil falar, porque a gente se emociona, porque os filhos sentem falta e sofrem muito, porque eles eram muito novos. O menino era maior, mas a menina só lembra dela por que mostramos fotos. Só quem convive e passa por isso sabe a angústia que é, o sofrimento que é. Nada vai preencher esse vazio de não ter a certeza do que aconteceu. O que mantém minha mãe em pé é a fé em Deus de um dia poder saber o que aconteceu", desabafa.
Para a promotora que coordena o NAT, Marcela Ozório, é justamente para ajudar e dar voz a essas famílias que o Ministério Público tem se empenhado e se engajado na temática dos desaparecidos.
“À medida que formos avançando nessas etapas que estabelecemos a respeito desse público desaparecido a gente vai informando, porque, na verdade, pouco se fala dos desaparecidos, pouco se fala dessa cifra tão alta de pessoas que estão desaparecidas em todo o Brasil. Hoje estamos tentando jogar luz a essa questão também porque é pouca explorada, tanto que não existe fluxo entre as instituições para buscar essas pessoas que estão desaparecidas.
Nós constatamos através dos registros que o nº de desaparecimentos vem aumentando nos últimos anos, em vários sentidos, e o MP tem que dar atenção para essa área e é isso que a gente está tentando agora fazer, que é um trabalho que vai envolver várias etapas”, finaliza.
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