Para especialistas, acesso rápido e fácil a esse tipo de serviço e falta de educação financeira levam brasileiros a contrair dívidas que não podem pagar

O aumento da inadimplência no país tem um fator pouco percebido nas análises econômicas: o financiamento instantâneo promovido pelo acesso cada vez mais facilitado das famílias aos cartões de crédito. Nos últimos quatro anos, o número de cartões ativos no Brasil dobrou. Saltou de 98,9 milhões, em dezembro de 2018, para 208,7 milhões, no fim do ano passado, segundo o Banco Central (BC).

Há mais cartões do que gente no país. O Censo 2022, divulgado em junho, mostrou que somos 203 milhões de brasileiros. Os números do BC mostram que muitas pessoas têm mais de um cartão de crédito na carteira. Afinal, o número total de plásticos emitidos em uso é quase o dobro da população economicamente ativa do Brasil, de 107,4 milhões.

O número chamou atenção do próprio presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em encontro recente com empresários do setor de varejo.

— Os bancos deram muitos cartões para muitas pessoas, as pessoas começaram a ter múltiplos cartões. Com o aumento de juros, a situação financeira mais recente, elas acabaram se endividando. E hoje temos uma inadimplência muito alta — disse Campos Neto.

Para especialistas, o alto número de brasileiros com dívidas atrasadas tem ligação com a liberação imediata de linhas de crédito — as chamadas pré-aprovadas — desacompanhada de educação financeira e de falta de transparência sobre os custos.

Houve aumento da emissão de cartões por redes de varejo, além da maior oferta de cartões pelo setor bancário, que foi facilitada com o surgimento das fintechs, como são chamadas as startups desse ramo.

Informalidade

Embora importante para a inclusão financeira, o cartão sem o devido preparo do consumidor para usá-lo de forma responsável pode “aumentar o nível de endividamento das famílias”, alertou o último relatório de economia bancária do Banco Central. Os técnicos dizem que o tema merece atenção porque algumas linhas de crédito podem ter juros maiores que 400% ao ano, como no rotativo.

O endividamento médio das famílias chegou a 48,5% da renda anual em abril deste ano, bem próximo do recorde da série histórica do BC, de 50,1%, de junho de 2022. Outra base de dados, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), indica que 78,3% dos núcleos familiares do país tinham alguma dívida até maio.

Ao falar do nível elevado de endividados, Ricardo Teixeira, coordenador do MBA de Gestão Financeira da FGV, faz uma relação entre o aumento da informalidade no mercado de trabalho e o desequilíbrio financeiro das famílias:

— Temos um grande número de pessoas em emprego informal, sem a segurança da renda. E quando há um grande contingente que está em ocupações sem necessariamente garantias de quanto você vai receber no médio e longo prazo, cresce muito o risco de não conseguir pagar as dívidas.

A taxa de informalidade foi estimada em 38,9% da população ocupada, o que representa 38 milhões de trabalhadores informais em maio, segundo o IBGE.

— Somos bombardeados por uma oferta de crédito pré-aprovado (liberação imediata) enorme, e as pessoas costumam ser otimistas com relação a quanto vão faturar nos próximos meses. Passam a usar esse crédito na ilusão de que conseguirão honrá-lo — avalia o especialista da FGV.

Oferta em lojas

Mesmo entre os que têm emprego garantido é difícil controlar os gastos. A funcionária pública Rosemeri de Jesus, de 56 anos, chegou a ter quatro cartões de crédito, com limites entre R$ 500 e R$ 1 mil. Três eram de lojas de departamento e vestuário e outro era de banco.

O crédito disponível era tentador. Rosemeri conta que a maior variedade de cartões abria margem para um maior volume de compras. No fim do mês, o jeito era parcelar as faturas e entrar no rotativo. A solução aparentemente simples tornou-se “uma bola de neve”.

Para negociar as dívidas, recorreu ao programa Serasa Limpa Nome. Os débitos de três dos quatro cartões já foram quitados. O do quarto ela ainda está pagando as últimas parcelas. Estão todos bloqueados e, hoje, ela tem um único e novo cartão ativo.

— Os cartões foram cancelados, mas não os quero de volta. Só quero pagar [a dívida] — afirma Rosemeri.

Os cartões de crédito denominados private label são aqueles oferecidos por grandes redes de varejo, como forma de fidelizar os clientes, porque muitas vezes só podem ser utilizados no próprio estabelecimento. As vantagens incluem parcelamentos mais alongados, descontos, programas de recompensas etc.

Carlos Müller, sócio do MNGM Advogados e com atuação na área, explica que nesses casos a avaliação de crédito costuma ser menos rigorosa do que nas contratações dos cartões tradicionais, o que acaba contribuindo para que as dívidas se acumulem.

Os cartões de crédito nesta modalidade não estão sujeitos à regulação do Banco Central, por não serem emitidos por instituições financeiras. Porém, é bastante comum o envolvimento de instituição financeira como participante da operação, sobretudo para que esta financie o pagamento da fatura para o cliente.

Apesar do aumento da competição no setor de cartões de crédito, especialmente com o surgimento das fintechs, o mercado ainda é dominado por conglomerados bancários.

A descentralização desse segmento seria um dos “remédios” para reduzir o custo de crédito ao consumidor, na avaliação do vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas de Cartão de Crédito e Serviços (Abecs), Ricardo de Barros Vieira.

A taxa de juros média no cartão de crédito, em maio, chegou 106% ao ano. Nas compras parceladas, o juro médio foi de 194,3%. A modalidade mais arriscada, o rotativo, registrou 455% anuais, maior nível desde maio de 2017.

Gastos concentrados

As quatro maiores instituições financeiras do país — Caixa Econômica Federal, Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco — concentravam 59% do mercado de crédito até o fim de 2022, segundo o BC. Apesar de seguir uma trajetória de queda, em relação ao ano anterior, houve redução de apenas 0,3 ponto percentual.

— A maioria das fintechs não tem estrutura financeira para garantir crédito como os bancos. Quando você olha para o Brasil, em que não há uma concorrência bancária elevada, você já entende que quem usa mal o pouco dinheiro que tem ficará endividado. Quanto mais concentrado estiver o crédito, mais as famílias estão endividadas — avalia Luciano Bravo, CEO da Inteligência Comercial e especialista em crédito internacional.

Ao longo dos anos, a carteira de Gabriella Nobre foi ganhando outros cartões: três de loja de departamento e mais um de banco. Todos tinham limites baixos, o que para a analista “é onde mora o perigo”.

— No início, parece muito legal. Mas você faz várias faturas de pequenos valores que no final acabam dando um valor muito maior. São muitas fontes de crédito para apenas uma fonte de pagamento — lembra Gabriella.

Mais nova, ainda era possível receber auxílio dos pais. Porém, na fase adulta, o jeito era “pagar o que dava” das faturas. Ela chegou a entrar no rotativo e pagar juros muito altos. Gabriella, então, decidiu cancelar todos os cartões e concentrar as contas em um único cartão de crédito, o que a ajudava a visualizar todas as despesas do mês no mesmo lugar.

Indagada se o fácil acesso aos cartões de crédito teria agravado o descontrole financeiro, Gabriella afirma que até pode ter facilitado, mas que na verdade faltou educação financeira.

— Hoje, eu entendo que o crédito é para quando você precisa de auxílio. As contas que tenho para pagar são contas que me planejei para ter, como meu carro. Ou seja, são despesas que eu planejei para estar no meu orçamento — explica a analista, que brinca: — Agora, eu tenho juízo.


Fonte: O GLOBO