Uma equipe da UW Medicine salvou um paciente com um transplante de dois órgãos com base em um conceito sobre imunoproteção
Médicos do UW Medicine Heart Institute, em Seattle, relataram um caso histórico no qual uma paciente recebeu dois órgãos de doadores, um fígado e um coração, para evitar a probabilidade extremamente alta de seu corpo rejeitar um coração de doador transplantado sozinho. Ao fazer isso, eles testaram o conceito de que um fígado doado pode conferir imunoproteção robusta em um transplante de coração subsequente. O caso foi relatado na revista científica The Journal of Heart and Lung Transplantation.
Adriana Rodriguez, de 31 anos, é a paciente que recebeu o transplante duplo no dia 14 de janeiro de 2023. De acordo com os médicos, ela se recuperou bem.
De acordo com os médicos, transplantes de coração e fígado para um receptor raramente são realizados. O caso de Rodriguez foi inédito de duas maneiras: ela recebeu o fígado de um doador apenas para mitigar a quase certeza de que seu corpo rejeitaria imediatamente o coração doado de que ela precisava desesperadamente. Além disse, seu próprio fígado saudável foi transplantado para um segundo paciente que tinha doença hepática avançada.
“Ela atendeu a todos os critérios para transplante, mas seus anticorpos (para os antígenos de doadores de órgãos) foram os mais altos que já vimos. Encontrar uma correspondência imunológica apenas para o coração dela seria como tentar ganhar na loteria. Essencialmente, ela precisaria que o doador fosse seu gêmeo imunológico”, disse o cardiologista Shin Lin, do UW Medicine Heart Institute, em comunicado.
Rodriguez precisava do transplante de coração após apresentar uma ruptura espontânea em sua artéria coronária em 7 de dezembro de 2022. Duas semanas antes, a paciente deu à luz seu terceiro filho.
“Acredita-se que haja mudanças hormonais e estresse na gravidez que podem tornar as artérias coronárias vulneráveis a essas rupturas. Na melhor das hipóteses, uma dissecção cura sem muitos danos ao coração e o paciente vai para casa com medicamentos e melhora. Mas este paciente teve uma terrível insuficiência cardíaca”, disse o médico Daniel Fishbein, especialista em insuficiência cardíaca da equipe de Rodriguez, com comunicado.
Os médicos descobriram que a ruptura havia causado danos generalizados e permanentes ao coração.
“A dissecação feriu muito o coração dela. Tentamos removê-la do suporte ao longo do tempo para ver se seu coração estava se recuperando, e ela continuou falhando. Passamos por várias estratégias de apoio para tentar ajudá-la a se curar sem ECMO e sem transplante, mas, no final das contas, não havia outra escolha", explicou o médico Jay Pal, cirurgião cardiotorácico.
Em 14 de dezembro, a paciente foi conectada a um sistema de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Esta máquina bombeia e oxigena o sangue, aliviando temporariamente o coração e os pulmões do paciente. Em 5 de janeiro, Rodriguez entrou oficialmente na lista para transplante.
A cada transplante, os médicos medem os anticorpos do possível receptor para avaliar a probabilidade de rejeição do órgão do doador. Alguém cujos níveis são altos é descrito como sendo “altamente sensibilizado”.
A avaliação de Rodriguez sugeriu que ela tinha uma alta probabilidade de rejeitar um órgão de 99% dos doadores em potencial.
“As mulheres grávidas são mais propensas a ter alta sensibilização porque, quando carregam uma criança, seu corpo desenvolve anticorpos contra antígenos que vêm do pai. Esses anticorpos não atacam o feto, mas se você transplantar essa pessoa, esses anticorpos atacarão o órgão transplantado – às vezes em minutos”, disse Lin.
Na busca por soluções, o médico encontrou um estudo observacional de 2021 que mostrou uma “profunda proteção imunológica” com um protocolo de transplante de coração após transplante de fígado entre sete pacientes altamente sensibilizados que precisavam de ambos os órgãos.
Embora o conjunto de dados fosse pequeno e Rodriguez não precisasse de um fígado, Lin achava que o protocolo HALT era sua melhor chance de sobreviver. Ele propôs a ideia à equipe, com uma emenda: o fígado saudável de Rodriguez seria transplantado a outro paciente que precisasse daquele órgão.
Inicialmente, vários colegas foram resistentes à abordagem. Havia a preocupação de que este era um tratamento não comprovado em um paciente complexo. Mas não havia outra solução que permitisse que essa jovem mãe se livrasse da ECMO e saísse do hospital.
Em 14 de janeiro, a agência de obtenção de órgãos LifeCenter Northwest notificou a UW Medicine de que dois órgãos estavam disponíveis. No transplante, os médicos primeiro removeram o fígado de Rodriguez e o colocaram no gelo, depois a transplantaram com o fígado do doador.
Em seguida, ela recebeu o coração doado enquanto seu fígado era transplantado para um paciente em uma sala de cirurgia adjacente.
“Observamos os anticorpos (de Rodriguez) quase todos os dias. Somente 65 dias após o transplante seus anticorpos contra esses órgãos doadores desapareceram completamente. Foi quando senti que finalmente poderia respirar com mais facilidade. Isso significava que era um sucesso absoluto.”, avaliou o cardiologista.
Ainda não se sabe exatamente como o fígado de um doador protege o coração transplantado.
“Acho que não entendemos completamente a ciência da imunologia do transplante. Podemos aprender muito com pacientes assim. Precisamos entender a mágica para que possamos, algum dia, repeti-la com medicamentos em vez de um órgão”, ressalta Fishbein.
Seis meses após o transplante duplo, Adriana Rodriguez agradeceu:
"Não há palavras para expressar minha gratidão pelo meu atendimento excepcional. (...) Rezo para que nenhuma outra mulher passe por isso, mas espero que minha situação as beneficie e traga esperança", disse ela.
Fonte: O GLOBO
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