Durante a segunda etapa dos estudos, dose de RNAm proporcionou uma redução de 44% nas mortes e recorrências do tumor

A primeira vacina terapêutica para um câncer está um pouco mais perto de se tornar realidade. As farmacêuticas Moderna e MSD anunciaram, nesta quarta-feira, o início da terceira e última etapa dos testes clínicos com o imunizante desenvolvido para o tratamento de pacientes com melanoma, tipo de câncer de pele mais letal.

A dose já mostrou um potencial significativo durante a fase dois dos estudos, quando, em conjunto com o anticorpo monoclonal Keytruda – considerado hoje um dos tratamentos mais eficazes para o melanoma –, proporcionou uma redução de 44% nas mortes e recorrências do tumor em comparação com aqueles que somente receberam o medicamento.

A nova etapa dos testes começou com o recrutamento dos primeiros voluntários, na Austrália. O objetivo é incluir 1.089 participantes em mais de 165 centros de pesquisa espalhados por pelo menos 25 países. A análise será uma ampliação do observado na segunda fase: uma comparação entre o imunizante junto ao remédio com os pacientes que apenas receberão o medicamento.

Os dados divulgados até então já foram recebidos de uma forma animadora pelos cientistas e por agências reguladoras. Em abril, a Food and Drug Administration (FDA), espécie de Anvisa dos Estados Unidos, concedeu à vacina o status de “terapia inovadora”. Na prática, o título reconhece o potencial da tecnologia e dá prioridade para a sua avaliação após o fim dos testes e a solicitação de uso pelas farmacêuticas.
                                 
Uma determinação semelhante foi concedida pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) depois de analisar os resultados preliminares. Os laboratórios também já anunciaram que pretendem expandir o desenvolvimento para imunizantes direcionados a outros tumores, como o de pulmão.

Como funciona a vacina contra o câncer?

Embora seja comum pensar na prevenção de doenças infecciosas quando se fala em vacina, o termo pode ser utilizado também para a nova classe em desenvolvimento para combater tumores – e outras doenças. Isso porque são injeções que atuam também por meio da indução de uma resposta do sistema imunológico.

Mas, enquanto as doses disponíveis nos postos de saúde, como a da Covid-19, fazem isso para preparar o corpo para a exposição futura a um vírus ou bactéria, as novas despertam o sistema imune para que ele ataque as células cancerígenas e combata o tumor.

A dose em estudos para o melanoma foi desenvolvida pela Moderna, laboratório que chamou a atenção recentemente ao ter sido um dos primeiros a criarem um imunizante para o novo coronavírus. Ele é especializado em uma tecnologia inovadora chamada RNA mensageiro (RNAm), que foi utilizada tanto para a injeção contra a Covid-19, como para o câncer.

— A pandemia adiantou muito a evolução das terapias de RNAm, e essa vacina para melanoma vem gerando uma repercussão muito grande na comunidade científica. O estudo da fase 2 demonstrou um benefício bem interessante — avalia Gustavo Fernandes, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).

O RNAm é alvo de estudos há anos, mas saiu de fato do papel com as vacinas da Pfizer e da Moderna na pandemia, que comprovaram a alta eficácia e segurança da plataforma vacinal. Para estimular as defesas, ele atua como um código de instruções que ensina as próprias células do corpo a produzirem determinada proteína.

Esse material, por sua vez, é lido pelo sistema imunológico, que então passa a criar as células e anticorpos. No caso da Covid-19, por exemplo, o imunizante faz com que o corpo produza uma parte do próprio coronavírus chamada proteína Spike. Ela sozinha é inofensiva, mas é suficiente para fazer o organismo reconhecer o vírus e se preparar para quando entrar em contato com ele.

No caso da dose contra o melanoma, como o câncer é diferente de pessoa para pessoa, ela é chamada de vacina personalizada. Os cientistas coletam o material genético específico do tumor de determinado paciente, isolam as proteínas dele e depois criam o imunizante. Com isso, a aplicação individual consegue ensinar o sistema imune a reconhecer e destruir as células cancerígenas.

— São apostas de terapia personalizada. Nós tivemos há 30 anos tentativas de vacinas para melanomas que foram grandes desapontamentos. Hoje os resultados são muito mais significativos. Temos um grau de certeza relativamente alto que a vacina vai caminhar, é algo altamente promissor — diz Fernandes.

No estudo de fase 2, com 157 participantes, a terapia durou cerca de um ano. Foram aplicadas nove doses da vacina, junto a 18 ciclos de 200 mg do medicamento Keytruda a cada três semanas. Os resultados foram divulgados ainda em dezembro do ano passado.

— É uma nova estratégia para usar a imunidade do paciente no combate ao câncer. A expectativa é grande, visto que a ciência trouxe grandes ganhos no tratamento com a imunoterapia para diversos tipos de tumores nos últimos 10 anos. Os resultados anunciados são ainda preliminares, mas mostram que essa combinação de ferramentas pode ser possível, o medicamento inibidor de checkpoint junto com a vacina — disse a oncologista Angélica Nogueira Rodrigues, diretora da SBOC e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em entrevista ao GLOBO em dezembro.


Fonte: O GLOBO