Após surto de sarna e espera por acolhimento em Guarulhos, grupo já recebeu visitas de médicos e agentes da PF, mas se preocupa com falta de planejamento a longo prazo

Em 48 anos, os 20 dias e noites acampado no chão do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, foram talvez os piores da sua vida, conta um ex-militar afegão recém-chegado com a família ao Brasil. 

Há pouco menos de uma semana, cerca de 150 pessoas que aguardavam no saguão por acolhimento foram transferidas a um abrigo em Praia Grande, no litoral paulista. E acabou o pesadelo do terminal 2, diz ele, sob anonimato. 

Desde que chegou ao alojamento, o grupo já recebeu a visita de médicos e agentes migratórios. Outro dia, a família do ex-oficial se emocionou ao pisar no mar. Mas persiste a preocupação por um planejamento a longo prazo, que permita sonhar com o futuro. O abrigo oferecido pelo governo brasileiro, a princípio, é temporário.

— Há alguns dias chegamos a um abrigo em Praia Grande. Por enquanto, está excelente. Os funcionários de várias instituições governamentais e agentes de imigração estão fazendo seu trabalho muito bem. 

Os problemas que existiam no aeroporto de São Paulo para nós não existem aqui — afirma ele, que era oficial do governo anterior do Afeganistão, de oposição ao extremista Talibã. — Já chamaram a Polícia Federal para registrar nossa documentação de residência. Também convocaram equipes de médicos para consultas e exames. Isso não havia antes. E prometeram contratar professores de idiomas para ensinar português.

No alojamento, o ex-militar, a mulher, três filhas e dois filhos estão divididos em dois quartos, “bons e limpos”, afirma ele. Cada acomodação tem disponibilidade para quatro a seis pessoas. O café da manhã é servido às 8h, depois há um almoço 12h e jantar às 18h. Também há instalações para cozinhar.

— Disseram que vão nos fornecer alimentos para que nós mesmos possamos preparar algo. Nossa cultura alimentar é muito diferente da do Brasil — conta ele, que é diabético.

'A brisa da praia refresca a alma'

Ainda não há rotina determinada de atividades diárias. Mas a mudança de local trouxe outras perspectivas. Outro dia, chegaram doações de brinquedos para as crianças no abrigo. E a família foi à praia pela primeira vez.

— Foi indescritível ver minha família livre, diante do mar pela primeira vez — conta o ex-militar afegão. — A brisa da praia refresca a alma.

Ao mesmo tempo, ressalta, a falta de recursos é uma lembrança latente de que a questão migratória e de acolhida carece de uma solução permanente.

— Como este acampamento foi estabelecido com o apoio direto e orientação do governo federal, esperamos que haja um plano de longo prazo para nós. Há muitos migrantes que saem do Brasil para outros países, como a Europa, em busca de mais programas de apoio. 

O povo brasileiro é muito bom, busca dignidade a pessoas em perigo. Mas essa falta de planejamento político de longo prazo leva os migrantes a tomarem caminhos arriscados para outros países da América e Europa — conta ele.

O receio é não saber o que acontecerá, à espera de uma decisão do governo federal. O GLOBO procurou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tomou a decisão pelo abrigo em Praia Grande depois de uma reunião com entidades da sociedade civil envolvidas com a causa, mas ainda não obteve retorno.

— Se ficarmos neste acampamento por mais tempo, é melhor aprender o idioma, assim o mercado de trabalho poderá ser um ambiente mais favorável para nós — diz o ex-militar afegão.

Seu sonho é que os filhos possam ir à escola e à universidade e considerar um futuro que seria impossível em seu país de origem, onde meninas são proibidas pelo Talibã de estudar.

— Quero que meus filhos e filhas estudem. Assim, cada um deles terá dignidade e poderá viver de forma independente, algo que não existia no Afeganistão — afirma.

Com os planos para o futuro, o passado pode ficar realmente para trás. Mas as memórias dos dias no aeroporto continuam bem presentes.

— Éramos muitos no aeroporto. Havia várias crianças e pessoas doentes. Não tínhamos acesso a banheiros, a lavar roupa. Todos estávamos sob muita pressão. A polícia dizia que nossos filhos estavam vagando pelo aeroporto e que iriam nos separar deles ou então que nos levariam para fora do terminal. Estávamos muito preocupados, até que as notícias começaram a sair na imprensa. E graças a Deus fomos salvos dessa situação — conta.

Procurada, a Prefeitura de Guarulhos informou que no momento não existem afegãos aguardando acolhimento no aeroporto. As novas chegadas não cessaram. Mas todos os que aterrissaram da sexta-feira passada até hoje, afirma a pasta, foram encaminhados para a cidade de Praia Grande ou para outros abrigos em São Paulo.

Em meados de junho, lembra a prefeitura, o prefeito de Guarulhos, Gustavo Henrique Costa "Guti", protocolou um ofício direcionado ao Ministério de Portos e Aeroportos. No documento, ele pedia que “o governo federal assuma as ações de interiorização dos afegãos no país, além de reforçar o pedido de reconhecimento da cidade como fronteira do Brasil e solicita também maior apoio financeiro para a alimentação daqueles que permanecem no aeroporto aguardando acolhimento”.

Há mais de um ano o Brasil vem recebendo grandes números de afegãos, que chegam fugindo do extremismo derivado da retomada do Talibã no Afeganistão. Medida adotada pelo governo federal permite que eles possam solicitar o visto humanitário, que autoriza a residência temporária no Brasil.

Especialistas criticam, porém, que ainda faltam políticas adequadas para os afegãos depois que eles chegam aqui. Além dos desafios de adaptação a uma nova língua e cultura, e de encontrar trabalho, não há, para os afegãos, programas específicos como a Operação Acolhida, criada pelo governo federal em 2018 para integração e interiorização de milhares de venezuelanos que já deixaram seu país de origem em meio a uma prolongada crise social e econômica.


Fonte: O GLOBO