Período tem sido marcado por ondas de calor e incêndios em todo o mundo numa era que foi nomeada 'fervura global'
Julho de 2023 quebrou amplamente o recorde do mês mais quente registrado na Terra, com 0,33 grau Celsius a mais que o recorde anterior de julho de 2019, anunciou o observatório europeu Copernicus esta semana. Diante dos recordes de temperatura em todo o mundo, o desafio passou a ser antecipar os limites de calor e umidade que o corpo humano pode suportar.
O termo científico internacional para medir essa capacidade de resistência é o "Índice de Bulbo Úmido Termômetro de Globo (IBUTG)" ("Wet Bulb Globe Temperature" - WBGT em inglês), que combina o cálculo do calor com o grau de umidade.
O "bulbo" é o depósito de mercúrio de um termômetro tradicional, envolto em um pano úmido, cuja evaporação serve para medir a temperatura úmida do ar. Já o "globo" é uma esfera oca pintada de preto que, presa a um termômetro, serve para medir a radiação térmica.
Especialistas calculam, em média, que um jovem perfeitamente saudável morrerá dentro de seis horas após a exposição a uma temperatura IBUTG de 35 graus Celsius. Essa temperatura equivale a 35 graus de calor seco e 100% de umidade, ou 46 graus com 50% de umidade.
Nesse ponto crítico, o suor, a principal ferramenta do corpo para baixar a temperatura central, não consegue evaporar da pele, o que eventualmente leva à insolação, ao colapso dos órgãos internos e à morte.
Um IBUTG de 35 graus foi atingido apenas algumas vezes, principalmente no sul da Ásia e no Golfo Pérsico, disse à AFP Colin Raymond, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa.
Nenhum desses casos durou mais de duas horas, o que significa que nunca houve "fenômenos de mortalidade em massa" vinculados a esse limite de sobrevivência humana, disse Raymond, autor de um grande estudo sobre o assunto.
Mas o calor extremo não precisa chegar nem perto desse nível para matar uma pessoa.
Episódios mais comuns
Na verdade, todo mundo tem um limite diferente com base em sua idade, saúde e outros fatores sociais e econômicos, dizem os especialistas. Por exemplo, estima-se que mais de 61 mil pessoas morreram devido ao calor do verão passado na Europa (inverno no Brasil), onde raramente há umidade suficiente para criar perigosas "temperaturas de bulbo úmido".
Mas à medida que as temperaturas continuam subindo (julho foi o mais quente já registrado), os cientistas alertam que os episódios de IBUTG também se tornarão mais comuns. A frequência desses eventos no mínimo dobrou nos últimos 40 anos, explica Raymond, que considera esse aumento uma consequência grave da mudança climática causada pelos humanos.
Raymond calcula que as temperaturas de bulbo úmido "excederão regularmente" os 35 graus em várias partes do mundo nas próximas décadas se o mundo aquecer 2,5 graus acima dos níveis pré-industriais.
Para testar esse limite, pesquisadores da Universidade Pública da Pensilvânia mediram as temperaturas centrais de pessoas jovens e saudáveis dentro de uma câmara térmica. Os participantes atingiram seu "limite ambiental crítico" quando seus corpos não conseguiram evitar que sua temperatura central subisse ainda mais, a um IBUTG de 30,6 graus.
Joy Monteiro, um pesquisador na Índia que no mês passado publicou um estudo na "Nature" analisando as temperaturas de bulbo úmido no sul da Ásia, disse que a maioria das ondas de calor mortais da região estava bem abaixo do limite teórico de 35 graus.
A resistência humana a essas temperaturas é "tremendamente diferente dependendo de cada pessoa", disse à AFP.
Idosos são os mais vulneráveis
As crianças pequenas são menos capazes de regular a temperatura corporal, portanto estão em maior risco, disse Ayesha Kadir, pediatra do Reino Unido e consultora de saúde da Save the Children. Mas são os idosos, que têm menos glândulas sudoríparas, os mais vulneráveis. Quase 90% das mortes relacionadas ao calor na Europa no verão passado ocorreram entre pessoas com 65 anos ou mais. As pessoas que precisam trabalhar ao ar livre em altas temperaturas também correm maior risco.
Joy Monteiro observa que as pessoas sem acesso a banheiros costumam beber menos água, o que provoca desidratação. Sua pesquisa mostrou que o fenômeno climático El Niño elevou o IBUTG no passado. O atual El Niño, o primeiro em quatro anos, deve atingir o pico no final deste ano.
As temperaturas de bulbo úmido também estão intimamente relacionadas às temperaturas da superfície do oceano, disse Raymond. Os oceanos do mundo atingiram a temperatura máxima histórica na semana passada, superando o recorde anterior de 2016, de acordo com o observatório climático da União Europeia.
Julho de 2023, o mês mais quente da História
O mês passado foi marcado por ondas de calor e incêndios em todo o mundo, com temperaturas médias na atmosfera 0,72 grau acima das médias recentes de julho entre 1991 e 2020.
Em 27 de julho, antes mesmo do final do mês, os cientistas consideraram "extremamente provável" que julho de 2023 fosse o mês mais quente já registrado, entre todas as estações juntas.
Nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, a humanidade saiu da era do aquecimento global para entrar na da “fervura global”.
Fumaça dos incêndios em Quebec, uma das províncias mais atingidas pelas chamas nos últimos meses — Foto: Daryann GAUTHIER / Societe De Protection Des Forets / AFP
Os oceanos também são vítimas deste fenómeno preocupante: as temperaturas registadas à superfície do mar são anormalmente elevadas desde abril, e os níveis registrados em julho são inéditos.
O recorde absoluto foi quebrado em 30 de julho, com 20,96 graus. Ao longo do mês, a temperatura da superfície do mar ficou 0,51 grau acima da média (1991-2020).
Bombeiros combatem incêndio próximo à vila de Vati, na Grécia. — Foto: Spyros Bakalis/AFP
— Acabamos de testemunhar novos recordes para as temperaturas globais do ar e da superfície do oceano em julho. Esses recordes têm consequências terríveis para as populações e para o planeta, que estão expostos a eventos mais extremos, frequentes e intensos — disse Samantha Burgess, vice-diretora do Serviço Europeu de Alterações Climáticas Copernicus (C3S).
Sinais do aquecimento global causado por atividades humanas - a começar pelo uso de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás) - surgiram simultaneamente em todo o mundo.
Calor pelo mundo: SEATTLE, WASHINGTON — Foto: Alika Jenner/Getty Images/AFP
A Grécia sofreu grandes incêndios, como o Canadá, que por outro lado foi vítima de inundações. Sucessivas ondas de calor no sul da Europa, norte da África, sul dos Estados Unidos e partes da China têm sido esmagadoras.
A Grécia sofreu grandes incêndios, como o Canadá, que por outro lado foi vítima de inundações. Sucessivas ondas de calor no sul da Europa, norte da África, sul dos Estados Unidos e partes da China têm sido esmagadoras.
Os incêndios se espalharam em várias ilhas turísticas populares na Grécia, forçando evacuações em massa. — Foto: Satellite image ©2023 Maxar Technologies / AFP
A rede científica World Weather Attribution (WWA) já concluiu que as recentes ondas de calor na Europa e nos Estados Unidos teriam sido "virtualmente impossíveis" sem o efeito da atividade humana.
Um carro queimado após um incêndio perto da vila de Kiotari, na ilha grega de Rodes, na Grécia. — Foto: Foto de Spyros Bakalis/AFP
O Copernicus também indica que o gelo marinho da Antártida atingiu seu nível mais baixo em um mês de julho desde o início das observações por satélite, 15% abaixo da média desse mês.
Terceiro ano mais quente
"2023 é o terceiro ano mais quente até agora, com 0,43 grau acima da média recente" e "uma temperatura média global de julho de 1,5 grau acima dos níveis pré-industriais", acrescentou Samantha Burgess.
Este valor de 1,5 grau é simbólico porque é o limite mais ambicioso estabelecido pelo acordo de Paris de 2015 para limitar o aquecimento global. No entanto, o limiar a que se refere este acordo internacional refere-se a médias de muitos anos e não de um único mês.
Onda de calor na China aumenta a procura por 'facekinis' — Foto: Reprodução
— Embora tudo isso seja apenas temporário, mostra a urgência de esforços ambiciosos para reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa, que são a principal causa desses recordes — conclui Samantha Burgess.
E o ano de 2023 pode não ter terminado de bater recordes.
"Espera-se um final de ano relativamente quente devido ao desenvolvimento do fenômeno El Niño", lembra Copernicus.
Esse fenômeno climático cíclico sobre o Pacífico é sinônimo de aquecimento global adicional.
Fonte: O GLOBO
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