Especialistas citam falta de evidências científicas e criticam aprovação de uma modalidade terapêutica ter sido pautada no Congresso, e não nos órgãos técnicos

Ainda que as principais entidades médicas tenham se manifestado de forma contrária, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, nesta segunda-feira, a lei que autoriza os profissionais de saúde a realizarem ozonioterapia como tratamento complementar. 

A prática continua a depender da liberação da Anvisa – que a permite apenas em procedimentos odontológicos e estéticos –, mas especialistas temem que a nova legislação abra uma brecha para que a técnica, que carece de evidências científicas, avance pelo Brasil.

— Nossa manifestação nesse momento é de decepção pela sanção. Já havíamos nos posicionado contra após a Academia fazer um grupo de estudos e concluir que a ozonioterapia não possui nenhuma base científica para sua utilização médica nesse momento. Muito menos para a quantidade enorme de indicações que vêm sendo apregoadas — diz o presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), Francisco Sampaio.

Há críticas ainda ao fato de o tema ter sido pautado no legislativo e no executivo. Para o diretor científico da Associação Médica Brasileira (AMB), José Eduardo Dolci, a responsabilidade pela aprovação ou não de novos procedimentos médicos é dos órgãos responsáveis, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), mediante avaliação com rigor técnico.

— É descabido que isso tenha sido liberado pelo executivo, não há justificativa. É uma questão técnica, que deveria estar sendo aprovada, ou não, pelo Conselho Federal de Medicina, pela AMB, pelas entidades que representam a classe médica. Não vejo motivo para ser legislado dessa forma — defende ele, que é reitor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP).

A ozonioterapia é uma prática antiga que envolve o uso do gás ozônio, que tem um potencial oxidante e bactericida, misturado com o oxigênio. Juntos são aplicados de diversas maneiras no paciente, como pela aplicação direta com uma seringa, ou por via retal. Em tese, essa aplicação melhoraria a oxigenação dos tecidos e levaria a um fortalecimento do sistema imunológico.

No entanto, ambas as alegações não foram comprovadas de forma sólida, segundo as entidades médicas. A prática é permitida em alguns países, como Portugal, e proibida em outros, como nos Estados Unidos. Lá, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora, diz que a quantidade de ozônio necessária para ter um efeito germicida é muito superior à tolerada pelo ser humano.

Como são as regras no Brasil?

Em resolução vigente desde 2018, o CFM permite que os médicos realizem a ozonioterapia apenas em caráter experimental, em testes clínicos, por não haver “reconhecimento científico para o tratamento de doenças”. Em nota, o Conselho diz que a sanção da nova lei “não contradiz os termos da resolução", devido às delimitações da Anvisa.

Outros conselhos, como o de Farmácia e o de Biomedicina, já permitiam a técnica. Porém, por não se enquadrarem nas especialidades aprovadas pela Anvisa, também são, em tese, proibidas. Em nota divulgada após a sanção da nova lei, a agência reiterou que os aparelhos de ozonioterapia no Brasil são aprovados somente para procedimentos na área odontológica e estética (auxílio à limpeza e assepsia de pele).

A agência diz que não há equipamentos permitidos para finalidades médicas além das citadas porque "não foram apresentadas evidências científicas que comprovem sua eficácia e segurança". Destaca ainda que a utilização dos aparelhos para finalidades diferentes constitui infração sanitária. A pena pode envolver advertência, intervenção, interdição (da clínica), cancelamento da licença e/ou multa.

Em 2018, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, chegou a incluir, em decisão controversa, a ozonioterapia no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Mas a pasta afirma que a técnica é usada de forma restrita à área da odontologia, feita com aparelhos registrados e autorizados pela Anvisa.

Ainda assim, na prática, a ozonioterapia é facilmente encontrada em anúncios e clínicas privadas de médicos por todo o país, com promessas que englobam tratamento de câncer, terapia para problemas de reprodução, para dores crônicas, infecção pelo HIV, diabetes, entre uma série de outros problemas de saúde – dos mais simples, aos mais graves.

— O público leigo, muitas vezes carente de informações científicas, pode se apegar ao que pessoas mal intencionadas ou desinformadas estão divulgando. É fácil iludir uma pessoa que não tem conhecimento científico construindo uma boa narrativa — diz o diretor científico da AMB.

Páginas no Instagram divulgam ozonioterapia para tratamento do câncer e uma série de outras doenças, embora prática não seja permitida no Brasil. — Foto: Reprodução / Instagram

O que pode mudar com a lei

A nova lei, embora autorize todos da área da saúde a oferecerem ozonioterapia, estabelece que só podem ser utilizados equipamentos autorizados pela Anvisa, por isso as autoridades afirmam não haver alterações. Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, no entanto, a legislação abre uma brecha para que aparelhos regularizados para área odontológica ou estética sejam utilizados com finalidades distintas, sem grandes repercussões.

— Em tese, o médico pode usar um aparelho aprovado pela Anvisa e aplicar para outra finalidade. Seria como prescrever o uso off label (diferente da bula) de um medicamento. Isso está dentro do que chamamos de autonomia médica. Mas ele fica sujeito à responsabilidade civil se provocar qualquer dano ao paciente — explica o diretor do centro de pesquisas em direito sanitário (Cepedisa) da Faculdade Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith.

Em relação ao CFM, os especialistas divergem sobre até que ponto o Conselho consegue punir o profissional com a nova lei. Para o advogado especialista em direito médico do escritório Chalfin Goldberg Vainboim, presidente do Conselho de Bioética da OAB-SP, Henderson Fürst, ainda é possível dentro de sua própria normativa. No entanto, Aith entende que o cenário é mais complexo e, em última instância, o que vale é a lei, que pode beneficiar o profissional.

Além disso, há ainda a possibilidade de a legislação nem mesmo entrar em vigor, diz Fürst, caso seja declarada inconstitucional. Seria algo semelhante ao que ocorreu com a fosfoetanolamina sintética, em 2016, quando um projeto de lei autorizou a substância que, sem nenhum estudo científico, prometia tratar casos de câncer. Na época, a AMB ajuizou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) alegando “desconhecimento acerca da eficácia do medicamento e dos efeitos colaterais”.

— Assim como nesse caso, também a atual lei que autoriza a ozonioterapia é pautada em uma expectativa social que não corresponde às evidências científicas, colocando em risco o direito fundamental à saúde. No caso da fosfoetanolamina, o STF decidiu pela inconstitucionalidade e espera-se que faça o mesmo no caso da ozonioterapia — diz Fürst.

Dolci, da AMB, avalia que o tema ainda é recente e afirma que a associação não deliberou sobre o assunto. Porém, na sua opinião, uma ação direta de inconstitucionalidade é improvável devido aos critérios da Anvisa que foram contemplados no texto.


Fonte: O GLOBO