Declaração com menção à legitimidade de terras de povos tradicionais pode pressionar decisões no STF e no Senado, esperam lideranças do setor

As organizações indígenas esperam que a Cúpula da Amazônia em Belém, no Pará, possa influenciar o julgamento da tese do marco temporal, que limita o direito territorial de povos que estivessem ocupando em 1988 as áreas reivindicadas. 

Líderes da comunidade chegaram ao evento reclamando da falta de representatividade, mas avaliam que podem sair fortalecidos do encontro, porque uma declaração sem reconhecimento à legitimidade dos povos indígenas como guardiões da floresta seria uma vergonha internacional.

Em declarações durante os Diálogos Amazônicos, encontro que precede a reunião de chefes de Estado na cúpula em si, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se posicionou sobre o tema. Kleber Karipuna, um dos coordenadores da entidade, se diz otimista.

— A gente está com uma expectativa positiva — disse. — Não dá para pensar que nós estamos numa discussão de retomada do protagonismo ambiental e climático que o Brasil tinha anteriormente e a declaração sair sem nenhuma linha escrita sobre o compromisso dos presidentes dos países da bacia Amazônia com a questão indígena.

Em entrevista em Belém, Karipuna disse que um reconhecimento do papel indígena na preservação da floresta enfraquece o argumento do marco temporal, que deve ter julgamento retomado no Supremo Tribunal Federal (STF) entre agosto e setembro.

A discussão está interrompida desde o mês passado, quando o ministro Alexandre de Moraes proferiu seu voto contrário à tese, mas abriu brecha para uma política de indenização que indígenas dizem fragilizar seu direito à terra.

Como as terras indígenas têm demonstrado um perfil de preservação mais rigoroso até do que parques e outras unidades de conservação, a Apib entende que a aceitação do marco temporal nesse momento pode conflitar com a posição diplomática que o Brasil deseja adotar diante do mundo na declaração da Cúpula Amazônica.

Segundo Karipuna, porém, ainda há o risco de uma declaração final sair sem menção adequada à questão indígena. O maior risco não está no Brasil, único país que prevê direito constitucional dos indígenas à terra, mas de outros países da região.

O líder indígena aponta que há países amazônicos que atacam a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), apesar de a terem ratificado. Esse é um dispositivo internacional que sinaliza compromisso de realizar consulta prévia para obras e projetos que afetem povos tradicionais. Ela poderia ser uma inspiração para um compromisso embutido na declaração da Cúpula da Amazônia.

— Para o governo brasileiro, em tese, não teria tanto problema colocar isso numa declaração, mas tem países da Bacia Amazônica que não colocaram em prática a convenção 169, então não sabemos como isso vai sair acordado no texto final — afirma Karipuna. — Em termos de legislação, o Brasil é um pouco mais avançado para a questão indígena, mas ele também não consegue implementar essa legislação concretamente.

A discussão sobre o marco temporal no STF também ganhou uma ameaça paralela, que é um projeto de lei que busca rever os critérios para demarcação territorial.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que chegou a Belém para a cúpula no domingo, se diz convicta de que o evento fortalece a posição da comunidade.

— Estamos acompanhando a tramitação do PL 2903, que tramita no Senado, assim como estamos também acompanhando o STF, que pode retomar o julgamento até setembro. Estamos confiantes de que vamos enterrar esse marco temporal, que é nocivo aos povos, aos territórios e ao meio ambiente — afirmou a ministra. 

— O marco temporal já está altamente repercutido e temos uma posição totalmente contrária a ele. É algo que só vai aumentar os conflitos e a insegurança nos territórios, porque além de impedir novas demarcações, ele vai ainda rever territórios já demarcados.

Outro grupo que compareceu em peso ao evento em Belém foi a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que convidou entidades irmãs de outros sete países da região. Líderes conhecidos, como o cacique Raoni, e outros, tomaram o microfone em diversos momentos na plenária com mensagens duras.

— Se o marco temporal passar, ele acaba com tudo aquilo que construímos antes. Ou seja, a colonização só trocou de bota. Em vez de atirar, está usando a caneta contra nós para tirar os nossos direitos — disse o coordenador-geral da Coiab, Toya Manchineri, em conversa com jornalistas.

Apesar da presença marcante nos Diálogos Amazônicos, porém, os indígenas reclamam do espaço que teriam para levar demandas diretamente aos chefes de Estado que estarão na Cúpula da Amazônia a partir desta terça.

Inicialmente, as organizações dos povos originários requisitaram a presença de um representante de cada país no segmento de alto escalão do encontro. A proposta, porém, não foi aceita.

Kapiruna, da Apib, afirmou que ainda não estava confirmado até segunda-feira quantas lideranças indígenas teriam acesso aos presidentes no evento. A ministra Guajajara disse que as demandas indígenas manifestadas no evento dos Diálogos Amazônicos serão consolidadas em relatório e levadas aos chefes de Estado.

*O repórter viajou a Belém a convite do Instituto Clima e Sociedade.


Fonte: O GLOBO