Trabalho vai durar 12 dias no prédio onde foram presos Dilma Roussef, José Genoino e Vladimir Herzog

Aos poucos, as escavações realizadas no antigo prédio do DOI-Codi de São Paulo começam a revelar objetos que remontam ao funcionamento de um dos principais centros de torturas da ditadura militar.

Até a próxima segunda-feira (14), a atuação do Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi, que conta com apoio de quatro universidades e o esforço de 21 pessoas, tentará encontrar vestígios arqueológicos e até material genético nas salas e paredes do imóvel, por onde passaram presos como Dilma Roussef, José Genoino, Vladimir Herzog e Virgílio Gomes da Silva, parceiro do guerrilheiro Carlos Marighela.

Objetos encontrados no DOI-Codi: fundo de frasco de perfume, sola de sapato, pregos, pastilha de azulejo, botão e piso granilite que coincide com o revestimento interno — Foto: Projeto Arqueologias Doi-Codi/SP (@arqueodoicodisp)

Por enquanto, os principais itens localizados foram vidro de tinta, frasco de perfume, sola de sapato, pregos, pastilha de azulejo, botão e piso granilite, que ainda passarão por análise.

Vidro de tinta encontrado no local onde presos eram fichados — Foto: Projeto Arqueologias Doi-Codi/SP (@arqueodoicodisp)

O trabalho de resgate começou antes das escavações, com a coleta de depoimentos de ex-presos torturados no DOI-Codi. Tudo o que foi pesquisado e encontrado poderá ser visto num museu virtual, mas o objetivo é a criação de um memorial no espaço, o que ainda depende de negociações com o governo estadual de São Paulo, dono do imóvel. 

No mesmo terreno, ainda funcionam uma delegacia, um alojamento e um sobrado onde dormia o ex-chefe do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chegou a ser condenado por tortura praticada durante a ditadura militar. Ustra foi lembrado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro quando era ainda deputado federal e votou a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Coordenadora do grupo de trabalho, a historiadora Deborah Neves explica que já eram esperadas dificuldades na localização de objetos, pois o prédio, após o fim da ditadura, funcionou como um instituto de criminalística e desde os anos 1990 servia de depósito. Mas Deborah celebra as pequenas descobertas, como um vidro de tintas no espaço onde ficava o cartório em que os presos eram fichados. A tinta era usada no carimbo das fichas.


Escavações no antigo Doi-Codi de SP — Foto: Projeto Arqueologias Doi-Codi/SP

— O que para nós é ordinário pode fazer sentido para ex-presos. Em Buenos Aires, por exemplo, um trabalho de escavação no Club Atletico, um dos equipamentos de repressão da ditadura argentina, identificou uma bola de pingue-pongue, que parecia ser nada. Mas então os ex-presos lembraram que nos intervalos de tortura eles ouviam os guardas jogando pingue-pongue — explica Neves.

Ex-presos voltaram ao local durante pesquisa

No último fim de semana, 16 ex-presos, anteriormente entrevistados, foram convidados a visitar o prédio. Deborah explica que os diferentes perfis das vítimas ajudaram a corrigir um entendimento muitas vezes comum de que apenas militantes políticos eram torturados. No grupo, havia duas mulheres que não tinham qualquer atividade política: uma foi denunciada equivocadamente pela mãe de uma amiga, e a outra estava acompanhando um primo, então sargento do exército, que tentava comprar drogas.

— Nos depoimentos, que começaram em 2021, conseguimos atingir um público que não tinha falado ainda publicamente sobre o assunto. Então, além dos militantes mais conhecidos, que falam sobre a tortura há mais tempo, temos as falas de desconhecidos, que deixaram esse episódio triste de lado, mas agora toparam falar. 

Várias pessoas que estavam aqui não tinham atividade de militância alguma. Desmistifica a ideia consolidada que era "só não fazer nada errado" que não seria pego. Na verdade, só de ser amigo de alguém já poderia estar preso aqui e torturado. Para o grande público talvez isso seja uma novidade — diz a historiadora.

Fachada do DOI-Codi de São Paulo — Foto: Maria Isabel Oliveira

Além das escavações, um trabalho de arqueologia forense tenta encontrar material genético nas paredes do prédio. "Não esperamos encontrar uma ossada", explica Neves, mas outras evidências, como manchas de sangue, podem aparecer. As atividades estão abertas ao público geral, seja com pré-agendamento para visitas guiadas ou apenas aparecendo na porta do prédio. Houve, ainda, 16 vagas para trabalho voluntário, que contou com 90 inscrições, incluindo de pessoas de fora de São Paulo.

Após o fim do trabalho, o material coletado será analisado e ficará na Unicamp até a criação do memorial. Enquanto isso, testemunhos seguirão sendo colhidos, e um museu virtual, com imagens 3D e resultados da pesquisa, será criado. Em relação ao memorial físico, no prédio, o assunto está judicializado. 

O Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação para que o governo criasse o espaço, mas, desde dezembro de 2021, o processo estava suspenso, na tentativa de negociação entre as partes. Nesta terça (8), a suspensão foi renovada. Deborah Neves explica que, no governo anterior, houve sinalização positiva pela obra, mas a nova gestão ainda não demonstrou interesse.

O DOI-Codi de São Paulo foi a primeira unidade daquele destacamento, que em seguida se espalhou pelo país ao longo da ditadura. Para a historiadora, um memorial sobre o espaço ajuda a entender o presente. Ela lembra, por exemplo, das recentes operações policiais na Baixada Santista e em comunidades do Rio que deixaram dezenas de mortes e foram criticadas pela truculência e acusadas de abusos.

— A nossa segurança pública hoje tem muita relação com esse período, e a gente vê que não funciona. A forma de atuação violenta da polícia não tem sido eficaz. É necessário repensar que o Estado não pode ter carta branca para continuar cometendo crimes. Se aqui houve prisões, principalmente por razões políticas, durante a democracia o estado de exceção continua para boa parte da população, o que não é aceitável — analisa ela.


Fonte: O GLOBO