Nas redes sociais, moradores de comunidades relatam clima de medo com presença constante de policiais da Rota e barulhos de tiros; Defensoria também foi acionada para acompanhar relatos

A morte de ao menos dez pessoas em decorrência de uma operação policial ocorrida neste fim de semana em Guarujá, litoral de São Paulo, mobilizou reações do governo federal, da Defensoria Pública e de entidades defensoras dos direitos humanos. Para o governador Tarcísio de Freitas, “não houve excessos” no trabalho da polícia. 

A Ouvidoria das Polícias foi a primeira a apontar que ocorreram ao menos dez mortes, quando o governo paulista ainda sustentava que foram oito (duas teriam ocorrido na tarde de segunda-feira, segundo a prefeitura de Guarujá e a Secretaria de Segurança). E o ouvidor Claudio Silva afirmou que “não param de chegar novas denúncias”.

Na tarde desta segunda-feira, Silva se dirigiu até o Guarujá para ouvir de perto as denúncias e acompanhar os relatos de familiares e moradores nas comunidades. A ouvidoria destacou que há "necessidade de criteriosa apuração das reais circunstâncias" das mortes ocorridas por policiais porque "os relatos de moradores da região preocupam, ensejando ações de acompanhamento e prevenção por mecanismos de proteção de Direitos Humanos, no controle da atividade estatal".

A Defensoria Pública do estado também foi acionada, e nos próximos dias, defensores que fazem parte do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos também devem ir ao local para averiguar as denúncias de abusos.

Em grupos nas redes sociais, moradores de diversas comunidades relatam um clima de apreensão e medo. Uma moradora da Vila Edna, que não quis se identificar, contou que não teve coragem de levar seu filho à escola nesta segunda porque desde sábado há ações constantes da Rota na área em que mora, com “batidas nas casas das pessoas procurando por bandidos” e frequentes barulhos de trocas de tiros.

Maior letalidade

Mesmo sem considerar as ocorrências do Guarujá, a polícia sob a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) já mata mais do que no governo anterior. Dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que 155 pessoas morreram em decorrência de intervenção de policiais militares em serviço entre janeiro e junho de 2023, um aumento de 26% em relação ao mesmo período do ano passado.

A letalidade policial também aumentou entre a Polícia Civil, com nove mortes entre no primeiro semestre de 2022 contra 16 nos seis primeiros meses deste ano. Dados do Ministério Público de São Paulo mostram que, somente entre 1º de e 26 de julho, foram 22 mortes causadas por PMs em serviço no estado.

Morte de policial gerou reação

Na noite da última quinta-feira (27), o soldado Patrick Bastos Reis, da Rotas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) morreu após ser baleado durante um patrulhamento na comunidade Vila Zilda, no Guarujá. Outro policial ficou ferido. A ROTA fazia uma operação contra o tráfico de drogas no Litoral há alguns dias, já que a região é tida como prioritária nas ações de segurança pública da gestão Tarcísio.

Em resposta, o governo estadual deflagrou a Operação Escudo, a fim de tentar encontrar o autor dos tiros. Mas a operação policial gerou diversos confrontos em periferias do Guarujá durante o fim de semana, e deixou ao menos oito mortes. Para Tarcísio, os policiais apenas reagiram para conter a ameaça.

— A gente não quer de maneira nenhuma o confronto, mas a gente não vai tolerar a agressão porque a polícia reage para repelir a ameaça. Todas as ocorrências vão ser investigadas. Agora, não podemos permitir que a população seja usada e não podemos sucumbir às narrativas, a gente está enfrentando o tráfico de drogas e o crime organizado. 

A gente tem uma polícia extremamente profissional que sabe usar exatamente a força na medida em que ela precisa ser utilizada. Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que resultou em prisões — falou durante coletiva de imprensa nesta segunda.

Segundo a SSP, cinco policiais da reserva e um em serviço morreram na Baixada Santista somente neste ano. Rafael Alcadipani, professor da área de segurança pública na FGV-EAESP, destaca que a morte de um policial da Rota, considerada uma tropa de elite da Polícia militar paulista, é algo raro.

— A morte de um policial da rota em serviço e na viatura é um evento muito raro em São Paulo e sugere um descontrole do estado na baixada santista — opina.

Na noite do domingo, um homem chamado Erickson David Silva se entregou à polícia, confessando que matou o soldado Reis. Sua confissão teria sido corroborada por outras testemunhas que estavam no local, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública. Além dele, outras sete pessoas foram presas em flagrante no sábado, por crimes como tráfico de drogas, organização criminosa e homicídio, e mais duas no domingo. A operação Escudo deve seguir por ao menos mais 30 dias.

Repercussões

O ouvidor das Polícias foi até a cidade na tarde da última segunda, para conversar com familiares de vítimas e ouvir de perto as denúncias que a ouvidoria tem recebido. Há relatos de torturas e abusos nas abordagens, além do relato de dez mortes — duas a mais do que a contagem oficial do governo. 

O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo foi acionado pela ouvidoria e por movimentos sociais, e está acompanhando o caso e colhendo informações, e irá ao local nesta semana para ouvir famílias e moradores.

Em nota, a SSP informou que “todas as mortes resultantes de ações policiais estão sendo rigorosamente investigadas pela Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic) de Santos” e por meio de inquéritos militares e ressaltou que ocorreram oito mortes. 

A secretaria não deu nenhuma informação sobre a identidade das vítimas ou sobre o contexto das mortes. Também não respondeu quantas armas foram apreendidas na operação. Ainda de acordo com a pasta, a Operação Escudo seguirá no Guarujá por pelo menos 30 dias.

A ocorrência movimentou até o governo federal, e o ministro dos Direitos Humanos Sílvio de Almeida acionou a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos para acompanhar as investigações. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que espera uma investigação dos órgãos competentes da Polícia e do Ministério Público paulista e destacou que as imagens gravadas pelas câmeras corporais dos agentes devem ajudar na apuração. Dino ainda lamentou a morte do policial, mas disse que a reação ao crime parece ter sido “desproporcional”.

— Total solidariedade ao soldado, às polícias de São Paulo e à família. Com certeza as imagens das câmeras vão conseguir demonstrar que houve confronto ou se houve de fato o descumprimento da lei. 

É um terrível crime contra um policial, que merece repúdio, e houve uma reação imediata que não parece, neste momento, ser proporcional em relação ao crime que foi cometido. Agora, isso não é possível ser afirmado agora com apenas 24 horas, por isso é muito importante garantir o principal: que as investigações ocorram conduzidas pelas autoridades estaduais.

Em nota, o Instituto Sou da Paz lamentou a morte do soldado e manifestou “preocupação” com as denúncias de abusos policiais, e criticou a falta de investimentos da atual gestão em novas câmeras corporais. 

“A emboscada covarde que resultou na morte do soldado PM Patrick Bastos Reis precisa de uma rápida reação do Estado. É inadmissível, no entanto, que essa resposta seja dada de forma descontrolada e fora das balizas legais. Esperamos que a Polícia Civil e Ministério Público possam revisar as provas destas ocorrências e as imagens disponíveis para apurar e punir possíveis abusos, em claro sinal de que retrocessos como este não serão tolerados”, destacou o instituto.


Fonte: O GLOBO