Na época da pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), o ministro do STF participou de encontros de apresentação dos resultados

A principal fonte de dados para o voto do ministro do STF Alexandre de Moraes sobre a ação que julga a descriminalização da maconha foi um estudo publicado em 2018 pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ).

A pesquisa se baseou em 656 mil ocorrências e 556 mil apreensões entre 2003 e 2017 em São Paulo e concluiu que a diferenciação entre quem é acusado como traficante ou como usuário de drogas é distorcida de acordo com a classe social, raça e idade e, portanto, critérios objetivos poderiam reduzir injustiças. Moraes sugeriu que uma quantidade de até 60 gramas de maconha deveria ser considerada uso pessoal.

No início e ao final do estudo, Alexandre de Moraes se reuniu ao menos duas vezes com os participantes da pesquisa, explica Marcelo Guedes Nunes, diretor presidente da ABJ e um dos coordenadores do estudo. Ele elogiou a decisão de Moraes de decretar, em seu voto, uma sugestão de critério objetivo para de distinguir quantidades de uso pessoal e de tráfico.

— A partir do momento que a única prova é o porte de droga, é importante ter um critério objetivo para evitar ferir a isonomia. Caso contrário fica na mão da discricionariedade da mão policial, e se propaga no judiciário de maneira nefasta. A fixação de critério objetivo é necessária — afirma Nunes, que conta como foi feito o estudo.

— A ideia era reduzir as injustiças, de transformar o traficante em usuário, e o usuário em traficante, para não permitir que o policial faça uma tipificação só com base na quantidade. Com base nas apreensões históricas, definimos os valores e simulamos os impactos.

A pesquisa, então, definiu premissas de "isonomia" e de "razoabilidade" para sugerir critérios objetivos. Dependendo das premissas adotadas, os valores de corte para maconha variam entre 7 gramas (no cenário mais conservador)e 26 gramas (menos conservador).

No meio dos milhares de documentos, a pesquisa identificou que no caso de pessoas analfabetas acusadas de serem traficantes, por exemplo, a mediana de maconha apreendida era de 32,2 gramas. Já para quem possuía curso superior, a mediana era de 49 gramas, valor 52% maior. A idade e a raça foram outros fatores que impactavam nessas médias.

No caso de pessoas brancas, a mediana apreendida era de 30 gramas, enquanto no caso de pessoas pretas e pardas é de 54 gramas. Por isso, Moraes destacou em seu voto que "O branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto e pardo para ser considerado traficante".

— Para um analfabeto, de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante — afirmou Alexandre de Moraes, em seu voto.

— Há necessidade de equalizar uma quantidade média padrão como presunção relativa para caracterizar e diferenciar o traficante do portador para uso próprio. Vai ao encontro do tratamento igualitário dos diferentes grupos sociais, culturais, raciais. O branco ou o negro, o analfabeto ou o que tem pós doutorado, o velho ou o jovem, vão ter tratamentos iguais.

Além dos fatores sociais, a própria localidade impacta no corte de como a polícia trata quantidades de maconha apreendidas. Na capital paulista, a mediana era de 51,2 gramas, enquanto no estado, a mediana era de 32 gramas.

O ministro acrescentou que essa situação faz com que os presídios fiquem lotados de jovens e analfabetos. Desde a criação da lei Antidrogas, de 2006, destacou o estudo, a proporção de presos por tráfico saltou de 15,5% em 2007 para 25,5% em 2013. No geral, a população prisional cresceu em 80% no período.

Para Nunes, que diz que a equipe está orgulhosa em ver o estudo sendo relevante para definição de políticas públicas, a discussão está "atrasada" no Brasil, em comparação com vários outros países.

— Na maioria dos países que já tem uma legislação avançada, o usuário não é mais tratado como criminoso, mas como uma questão de saúde pública. Os votos acho que estão indo no sentido correto, de não criminalizar o usuário.

O voto de Alexandre de Moraes estava cercado de expectativa, principalmente ao considerar episódios de seu passado, como no episódio em que declarou, enquanto ministro da Justiça no governo Michel Temer, que planejava a erradicação da maconha na América do Sul. Nessa época, ficou famoso um vídeo em que ele cortava pés de plantação de maconha no Paraguai.

Para Nunes, porém, seu voto agora não significa necessariamente uma ruptura de discurso.

— Você entender que usuário de droga é problema de saúde pública e não do sistema penal não necessariamente tem a ver com entendimento sobre combate efetivo ao tráfico. Bem provável que ele continue sendo favorável ao combate ao tráfico. Ele não descriminalizou a droga, mas sim o usuário, é diferente. Trata usuário como mais uma vítima, não como criminoso.


Fonte: O GLOBO