Classe artística afirma que evento descaracteriza finalidade do espaço público cultural, enquanto artistas encontram dificuldades para agendar atividades nos pontos culturais existentes.

Após um culto religioso que durou 24 horas na Filmoteca Acreana entre a quarta-feira (7) e a quinta-feira (8), artistas e entidades culturais do Acre divulgaram um manifesto em repúdio à utilização do espaço cultural para a realização do evento. O documento é assinado pela Federação de Teatro do Acre (FETAC), Associação dos Músicos do Acre, Eurilinda Figueiredo, Heloy de Castro, João Veras, entre outros.

Chamado “24 Horas de Adoração”, o evento reuniu 24 igrejas de denominação evangélica, e cada congregação teve direito a uma hora de pregação no palco da filmoteca, que funciona em anexo à Biblioteca Pública, no Centro de Rio Branco.

No manifesto, a classe artística acreana atribui a organização do evento à Igreja Renovada. Porém, em nota oficial publicada em sua página em uma rede social, a congregação afirmou que apenas foi uma das igrejas participantes, e não a responsável pelo evento. Foi através de postagens da Igreja Renovada que os artistas e agentes culturais ficaram sabendo do evento na filmoteca.

“Ora, um culto religioso, realizado no espaço de uma Filmoteca – a única do Estado do Acre – descaracteriza a finalidade do espaço. Para além disso, trata-se de um espaço público climatizado, equipado com áudio e vídeo, segurança, energia elétrica, água, banheiros – tudo pertencente ao patrimônio público – sendo *utilizado durante 24 horas para fins privados*, para não falarmos dos servidores que têm a função de dar suporte técnico e promover o bom funcionamento do local – nesse caso, trabalhando em horário extra-turno, o que representa mais despesas com direitos trabalhistas.

É necessário deixar bem claro que tudo isso atenta contra os princípios da legalidade, imparcialidade, honestidade e lealdade às instituições públicas”, afirma um trecho do manifesto. (Confira a íntegra do documento após o texto)

O g1 entrou em contato com a Fundação Elias Mansour (FEM), responsável pela gestão do espaço, que informou que não vai se pronunciar. A FEM também não informou se os custos com a utilização do espaço durante o culto ficarão a cargo da fundação.


Perfil "24H de Adoração Acre" divulgou realização do evento em uma rede social — Foto: Reprodução/24H de Adoração Acre

O que diz a lei

A Constituição Federal garante a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos. Porém, o artigo 19 “veda aos Estados, Municípios, à União e ao Distrito Federal o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Na portaria nº 169, publicada em março deste ano no Diário Oficial do Estado (DOE) pela FEM, a instituição afirma que a utilização dos espaços culturais deve ser feita prioritariamente por iniciativas culturais da comunidade. Porém, a portaria também prevê que outras atividades podem ser realizadas nos espaços geridos pela fundação, desde que cumpram os requisitos. Os pedidos podem ser feitos por qualquer indivíduo ou organização.

“Eventos de outras naturezas poderão ser realizados nos espaços/equipamentos culturais apenas se não estiverem previstos eventos culturais programados anteriormente, mediante aprovação prévia da FEM. Todavia, tais eventos não podem afetar ou descaracterizar os aspectos culturais, históricos, curatoriais de cada espaço.

É vedada também a utilização dos espaços/equipamentos culturais para a realização de eventos político-partidários, com exceção aos eventos previstos e regulamentados na legislação eleitoral correspondente”, afirma a publicação.

No manifesto, os artistas acreanos alegam que a prática de realização de cultos religiosos tem sido frequente dentro de instituições públicas, mas não especificam sobre casos. Ainda segundo o texto, “artistas, agentes culturais, trabalhadores e trabalhadoras têm enfrentado dificuldades para agendamento de pautas nos poucos espaços em funcionamento”.

A classe encerra a publicação pedindo esclarecimentos à FEM e a outros órgãos, e cobra maior discussão e debate sobre as diretrizes que definem esses e outros assuntos.

“Os espaços públicos não podem ser apropriados por convicções religiosas ou partidárias. Das repartições públicas partem políticas públicas e decisões que atuam na rotina da sociedade. A Constituição Federal garante o direito à expressão religiosa, mas deixa evidente que estruturas públicas não devem ser empregadas nesses eventos.

Por esse motivo, manifestação religiosa em espaços públicos, por mais sincrética que seja, não pode desviar a finalidade do espaço. O uso sistemático para esse tipo de atividade pode acarretar responsabilidade por improbidade administrativa”, acrescenta.

Fonte: G1