Um dos responsáveis pela pesquisa 'A Cara da Democracia', professor da UFMG aponta ainda que possíveis sucessores de Bolsonaro não demonstram a mesma capacidade do ex-presidente de unificar o campo conservador

Professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos responsáveis pela pesquisa "A Cara da Democracia", Leonardo Avritzer afirma que o levantamento feito pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT) traz pontos positivos, mas também alertas para as instituições brasileiras. 

Apesar de mais da metade dos brasileiros preferir a democracia a outra forma de governo, ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de sua base ao Supremo Tribunal Federal (STF) ainda provocam danos.

Quais são os pontos positivos e negativos da pesquisa em relação à democracia brasileira?

Os dados estão em continuidade com resultados de pesquisa que obtivemos nos anos anteriores. Isso é positivo, mas também acende alguns alertas. Tivemos a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro na eleição do ano passado, mas a pesquisa mostra que ainda existe uma base bolsonarista que rejeita a democracia e as instituições democráticas. 

Alguns dados são ligeiramente mais positivos, como a democracia ser preferível a outra forma de governo (57% defendem essa visão). Porém, a confiança no STF continua baixa (36% dizem não confiar na Corte). É preocupante porque a gente sabe que Bolsonaro, pessoalmente, atacou o STF. Percebemos que o discurso bolsonarista continua fazendo diferença na imagem das instituições.

Continua havendo ainda uma identificação entre sistema político, democracia e corrupção, apesar de os fatos fundamentais nesse semestre terem sido exatamente a revelação de um conjunto de suspeitas fortes em relação a corrupção no círculo mais restrito do bolsonarismo. Isso não parece ter tido ainda um efeito sobre o grupo mais bolsonarista.

Como essa identificação se traduz?

Preocupa e deve estar no radar a associação entre golpe de Estado e corrupção. Em 2018, havia uma ligeira maioria de pessoas que diziam que muita corrupção justificaria um golpe de Estado. Depois, em 2020, na pandemia, num momento em que Jair Bolsonaro falava em intervenção militar, a população rejeitou em sua maioria um golpe. Agora, temos este ano um crescimento, de 46% para 50%, voltando a haver uma maioria a favor de golpe de estado em caso de muita corrupção.

O campo bolsonarista segue ativo mesmo depois da derrota nas eleições?

O movimento não desorganiza no pós-eleição. O bolsonarismo opera num ecossistema integrado de desinformação. Ele produz muita informação falsa que ele apresenta como informação. Tem os canais do YouTube extremamente ativos. Depois, pessoas importantes do sistema político com muitos seguidores que partilham essas informações. Isso é um ecossistema integrado. Talvez eles estejam um pouco menos ativos no campo do Bolsonaro e dos filhos, mas, fora desse campo, está mais ou menos intocado.

Em relação a essa base, os dados da pesquisa indicam que a sucessão de Bolsonaro em 2026 está indefinida após o ex-presidente ficar inelegível. Qual o desafio?

Bolsonaro fez o que a direita brasileira tentava fazer desde Jânio Quadros e não conseguia: juntar grupos fortemente conservadores no campo moral, grupos economicamente conservadores e os militares. 

Essa não é uma amálgama muito simples. O conservadorismo econômico, do mercado financeiro, não é conservador do ponto de vista moral. Existem ainda fortes tensões entre o mercado e os militares em relação ao papel do Estado. Bolsonaro teve capacidade de juntar esses grupos e formar uma maioria de uma forma muito pessoal. O percebemos é que nenhum dos seus sucessores tem a mesma capacidade.

Com quais grupos os nomes colocados, na sua avaliação, se comunicam melhor?

O Tarcísio de Freitas representa mais um certo conservadorismo paulista, conservadorismo no governo, algumas agendas na questão dos militares, como ele propôs recentemente com as escolas militares, mas muito de leve. Romeu Zema, por outro lado, que está muito abaixo na pesquisa, já está tentando se posicionar mais classicamente no campo de extrema-direita, inclusive tentando reivindicar mais diretamente a herança bolsonarista. 

O governador, por exemplo, condecorou na Assembleia Legislativa do Estado de Minas o ex-presidente. Ele procura se posicionar com o Bolsonaro, mas ele também não consegue abertura na direção de outros atores importantes para o bolsonarismo que parecem mais propensos a ir na direção de Tarcísio. E tem a Michelle Bolsonaro, que fica ligada à imagem da religião. 

Ela se apresenta muito mais fortemente pelo lado religioso, de pastora, do conservadorismo moral e religioso, que os outros dois. De um lado é cedo para ter uma visão mais completa, mas, por outro lado, pode ser justamente que aquilo que Bolsonaro juntou os três separam: economia, religião e valores de extrema-direita. Isso mostra as dificuldades do PL e que o campo da direita deve ter em 2026, mantidos os principais elementos dessa conjuntura.

Em relação ao governo Lula, que aspecto favorece, nesse momento, sua avaliação mais positiva, na comparação com Bolsonaro?

A estabilização da governabilidade da gestão econômica tem sido percebida por uma parcela significativa da população. Mais de 70% dos brasileiros dizem que a economia melhorou ou está igual, na comparação com o governo Bolsonaro. Esse é um dado positivo em relação ao governo.

Do ponto de vista de valores, a sociedade segue conservadora?

Algumas questões valorativas mostram a opinião pública fortemente conservadora. O crescimento da direita, de uma população majoritariamente conservadora e de algumas agendas conservadoras explicam dados como alto índice de brasileiros contra a descriminalização do uso de drogas, contra a legalização do aborto e até contra a proibição da venda de armas. 

Em relação à pena de morte, o eleitorado também começa a se movimentar em uma visão mais conservadora, num país que discute o tema intensamente desde 1986. Agora, em algumas questões, a população fica um pouco mais dividida. São temas como cotas raciais e prisão de mulheres que interrompem a gravidez. É importante perceber que os brasileiros estão fortemente divididos valorativamente.


Fonte: O GLOBO