Como médicos brasileiros, nos perguntamos, como se sentem hoje nossos colegas trabalhando para salvar pessoas, quer em Israel ou na Palestina, frente a esse excesso de vulnerabilidade e luto?

Só a esperança aplaca a dor. Esse é o título da entrevista autobiográfica de Simone Veil, essa mulher extraordinária de nosso século, que foi Ministra da Saúde na França e presidente do Parlamento Europeu, dada em 2006, para a Fundação Memorial da Shoah. Já havia feito depoimentos sobre o que passara durante o Holocausto às maiores tribunas, como a ONU e o Conselho da Europa como um dever de registrar, infatigavelmente, o testemunho do que não pode ser esquecido. 

A linguagem, a que carrega em si um trauma, nos consola e fere em igual diapasão, e é mais que nunca necessária, para nós, seres linguísticos, que dela necessitamos para continuar existindo e sobretudo para nos lembrar do que não temos direito de esquecer. 

Esse é o sentimento que nos une hoje, em busca da possível racionalidade entre a boa vontade determinada de dialogar dos “soft power” e a real politik dos “hard power”, diante dos mais de mil pacotes de corpos de crianças mortas em Gaza, somados às famílias israelenses destroçadas pelos atos terroristas, cujas imagens nos trazem o clamor mais explícito por ações de salvamento, e uma trégua humanitária, mais do que por um corredor humanitário, seja ele de entrada ou de saída.

Essa linguagem, à qual se denominarmos como discurso de ódio pareceria pueril até, diante do inominável que vivemos neste momento, quando tática e estratégia, expressões tradicionais dos senhores da guerra ao longo da história, se revelam grotescamente sob a mais primitiva barbárie.

Quando o despudor obsceno (assim mesmo no pleonasmo) de bebês e crianças assassinadas, estupros, sequestros, jovens no viço da vida despedaçados por tiros em uma festa, se somam a uma população de quase 2 milhões de pessoas hoje sem água potável ou combustível, este que faz geradores funcionarem e manterem aparelhos médicos e incubadoras com recém-nascidos vivos, e a todo esse conjunto se denomina “crimes de guerra”. 

É de nos perguntarmos: e então? Além de não sabermos como esses serão julgados, sabemos sim, que foram ultrapassadas todas as barreiras éticas, e o mínimo de respeito pelo outro, o que nos deixa sem direito à perplexidade, a nos interrogar se na dialética de nossas existências a liberdade de um povo e a capacidade de destruir estariam intrinsecamente ligadas, como um destino do homem. Ou se a condição humana nos confere, a despeito de disputas sangrentas, um desejo de justiça como a nossa característica mais essencial.

Como médicos brasileiros, estamos acostumados com a brutalidade de um dia a dia urbano no Brasil, onde a prática nos ensinou, de par com a melhor ciência e tecnologia, preceitos de humanismo e momentos sublimes de interação pessoal. Porém ensinou-nos também a lidar com uma linguagem específica, de até discernir facções do tráfico e milícias, essas que geram dezenas de vítimas diariamente. 

E discorrendo sobre a vida e a morte, nos perguntamos, como se sentem hoje nossos colegas trabalhando para salvar pessoas, quer em Israel ou na Palestina, em que pese as absolutamente diferentes infraestruturas e condições práticas do exercício médico, frente a esse excesso de vulnerabilidade e luto?

Ao ouvir o depoimento sereno e contundente ao mesmo tempo de um colega palestino experiente e conhecedor dos problemas que afetam a região, como o dr. Mustafa Barghouti, entendemos, se não o havíamos ainda entendido, que não haverá saída nem para a exigida mobilidade social de um milhão de pessoas, e nem sobretudo para as centenas de pacientes hospitalizados e feridos, que necessitam de cuidados e de uma mínima linha de atenção, em condições tão adversas. Mesmo sabendo nós todos que adversidade é eufemismo diante do cenário de guerra mais realista onde se trava uma luta pela vida, qualquer que seja ela.

Assim terminou a semana na qual nos alegramos em ver o Prêmio Nobel de Medicina outorgado coetaneamente ao nosso momento histórico, aos cientistas que salvaram milhões de vidas com a criação da plataforma de vacinas de RNA mensageiro, na maior pandemia e crise sanitária deste século. Certamente a nos exigir nova leitura do papel do homo sapiens no planeta, suas virtudes e sua vilania.


Fonte: O GLOBO