Dirigentes, empresário e psicóloga refletem sobre a nova realidade das categorias inferiores

Aos 17 anos, Luighi já soma 50 mil seguidores no Instagram. A cada postagem, são centenas de interações. O atacante do sub-17 do Palmeiras já chama a atenção não só da torcida, como também do mercado. Em julho, foi noticiado que o Grupo City estaria monitorando ele e o meia Erick Belé, um ano mais novo e também badalado entre os palmeirenses (conta com 19,5 mil seguidores). Detalhe: apesar da fama, nenhum deles atuou uma vez sequer pelo time principal.

Não se trata de fenômeno isolado. Cada vez menos os atletas de base dependem de serem aproveitados em cima para terem visibilidade. Resultado de uma realidade em que o consumo de futebol pelo torcedor extrapolou as fronteiras da categoria principal.

Quase todos os jogos do sub-17 e do sub-20 são exibidos seja em emissoras convencionais ou em canais de Youtube. Hoje, por exemplo, o Sportv transmitirá a decisão da Copa do Brasil sub-20, entre Cruzeiro e Grêmio, às 11h, e as duas semifinais do Brasileiro sub-17: São Paulo x Flamengo, às 18h; e Palmeiras x Corinthians, às 20h30.

Quando não há transmissão pela TV, os jogos podem ser conferidos pelos canais oficiais dos clubes no Youtube. Como a rodada do Carioca sub-17 e a final da Copa Rio sub-20, entre Botafogo e Fluminense, neste último sábado.

— Quando jogador, disputei cinco copas São Paulo. E para passar na TV só se chegasse na final. Hoje, meu sub-20 tem entre 20 e 25 jogos por ano transmitidos em canais convencionais. Se considerar o Youtube, são todos — relembra João Paulo Sampaio, coordenador das categorias de base palmeirenses. — Claro que o clube tem chegado em muitas finais. Mas essa média é alta. É uma visibilidade importante na hora de negociar com patrocinadores.

A valorização da base enquanto vitrine para a marca dos patrocinadores é apenas um dos impactos. A transmissão de mais jogos também trouxe uma pressão maior da torcida por resultados. Só que revelar talentos e vencer campeonatos são processos com velocidades diferentes.

— O torcedor esquece que, na base, cada ano faz muita diferença. Às vezes meu time sub-17 tem 70% de atletas com 16 anos, alguns quase sub-15, porque o treinador acredita no potencial deles e trabalha com progressão de longo prazo. Mas vou jogar contra um rival que tem nove com 17. Dá quase um ano e meio de diferença. Se eu perder, estou consciente que foi porque estamos dando margem aos meninos. Mas se o clube não tiver capacidade de entender isso e só olhar para o resultado, teu trabalho fica em xeque — relata Erasmo Damiani, gerente da base do Atlético-MG, expondo um dilema cada vez mais comum:

— O treinador com o emprego ameaçado pode mudar de conceito. Montar um time para ganhar competição, não para formar atleta.

Dispensas de técnicos por falta de resultados em campo já entraram para a rotina da base. Em junho, o Vasco demitiu a comissão do sub-17 após as eliminações nas Copas do Brasil e Rio da categoria. No início do ano, o Bahia anunciou a saída de Diogo Siston do sub-20 após a eliminação na Copa SP. Um ano antes, o mesmo treinador foi desligado do Corinthians depois do insucesso do time na própria Copinha. E esses são apenas alguns exemplos.

Para Guilherme Torres, coordenador metodológico de Xerém, este fenômeno decorre da falta de convicção no processo de desenvolvimento de talentos. Hoje, o Fluminense é um dos principais formadores do país. Na partida que o classificou para a final da Libertadores, seis revelações do clube estiveram em campo.

— Passa também pelo processo de educação dos treinadores de base. Muitas vezes só pensam na projeção de carreira, e o resultado pode alavancá-la. O clube precisa entender cada etapa do desenvolvimento do atleta, dando respaldo para que o trabalho independa de resultado de jogo, para que a avaliação seja mais ampla — diz Torres, sem deixar de apontar um aspecto positivo do maior destaque dado às competições.

— Dizer que o resultado não tem nenhum peso não é verdade. O jogo e a competição preparam os jogadores para o que eles vão encontrar no profissional. Desde de que sejam bem explorados pelos clubes.

Esta dualidade segue presente em outros aspectos. Minutos antes de atender a reportagem dO GLOBO, João Paulo Sampaio recebeu o telefonema do representante de um atleta do sub-20 do Palmeiras. O assunto: o interesse de dois clubes, um estrangeiro e um brasileiro, em seu cliente. A maior visibilidade da base contribuiu para aquecer ainda mais o mercado de transferências.

— O jogador passa a ser mais conhecido em todos os sentidos. Nas redes sociais, na TV... Vira um pop star ainda novo, sem nem ter jogado no profissional. E isso chama a atenção dos clubes de fora, que conseguem analisá-los sem nem precisarem vir ao Brasil, porque possuem plataformas para isso — afirma o agente Frederico Moraes, fundador da Promanager, que nos últimos anos intermediou ao menos quatro grandes vendas internacionais: João Pedro, Kayke e Metinho, do Fluminense; e Savinho, do Atlético-MG.

Os clubes têm o desafio de evitar que a exposição precoce atrapalhe o desenvolvimento dos atletas. Uma das principais preocupações de JP Sampaio é com o uso das redes sociais, que hoje se tornaram uma vitrine na qual estes atletas se exibem por meio de recortes de vídeos de gols e outros lances. O coordenador da base palmeirense se define um "fantasma" e diz fiscalizar pessoalmente as postagens de jogadores e até de membros das comissões.

— Eles são projetos e já pensam que a obra tá pronta. Nem subiu parede ainda. Mas isso é a empolgação dessa fama, que vem principalmente das redes sociais. Só que num dia te amam, no outro te odeiam. Então tem que tomar muito cuidado. Aqui a gente controla muito isso, para quando ganhar nao se empolgar, respeitar o adversário, estar com os pés no chão. Porque ali (nas redes) é um mundo de mentira.

O contato direto com o torcedor, potencializado pelas redes sociais, pode tanto criar deslumbramento quanto abatimento. E o trabalho é fazer com que saibam lidar com elogios e críticas.

— Quando chegam às categorias de maior visibilidade, a gente tenta fazer com que percebam como todos os olhos estão voltados para eles. É o cuidado de fazer o que chamamos de psicoeducação para com esses agentes: torcida, cobrança da instituição e da comissão técnica. Antes de tudo, eles precisam saber quem são e os instrumentos que dispõem para agir em relação a isso — explica Simone Luz, psicóloga da base do Fluminense.

— A gente trabalha com eles que torcedor é movido à paixão. Quando o time está bem, ele (atleta) é ótimo. Quando não, tudo é ruim. Eles precisam saber lidar com essa alternância.


Fonte: O GLOBO