Obra construída nos anos 1970 alagou terras de mesma reserva que levou STF a se posicionar contra o marco temporal indígena

O fechamento das comportas da maior barragem de contenção de cheias em Santa Catarina, no município de José Boiteux, no domingo, reabriu feridas na memória dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, onde vivem cerca de 2,5 mil pessoas em nove aldeias. O represamento alaga parte da terra, o que levou ao incidente em que três indígenas foram feridos por policiais militares, no cumprimento da ordem judicial para o fechamento da Barragem Norte.

A etnia esteve no centro da discussão sobre o Marco Temporal, cuja a ideia era criar uma data específica para que só fossem demarcadas terras de indígenas que estivessem nelas na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. A proposta foi negada pelo Supremo. Mas ela nasceu de uma outra disputa entre os xoklengues e o governo catarinense que levou a questão até o STF. A decisão da Corte terá repercussão geral sobre todos os processos de demarcação de territórios em andamento e foi considerado histórico pelos povos originários.

O caso chegou à Corte a partir de uma ação de reintegração de posse em que o governo do estado pediu 23 mil hectares reconhecidos como área indígena por uma portaria do governo federal em 2003. Se o marco fosse reconhecido, a terra voltaria a ter 14 mil hectares, como demarcado na década de 1950.

Barragem em frente a reserva indígena Xokleng — Foto: Editoria de Arte

Segundo o cacique Setembrino Camlem, as estradas que levam à terra indígena estão debaixo d'água, a comunidade está ilhada e moradias estão alagadas. Os desabrigados estão acolhidos na igreja e no colégio da comunidade.

Canal está faltando

Feita para controlar o fluxo do Rio Itajaí-Açu, a Barragem Norte tem 60 metros de altura e capacidade para armazenar mais de 357 milhões de metros cúbicos de água. A obra ainda não está concluída: falta o canal extravasor, necessário para a segurança das operações.

Para o cacique, o fechamento da comporta foi feito de forma apressada, para garantir a realização da Oktoberfest em Blumenau.

— Foi só fechar as comportas e remarcaram a festa — criticou.

Com o risco de enchente, a Oktoberfest havia sido suspensa na sexta-feira. As autoridades anunciaram ontem que será retomada amanhã, com a previsão é de chuvas menos intensas.

A construção da barragem começou em 1972. Dois anos depois do início das obras, houve a primeira grande enchente nas aldeias xoklengues.

O Ministério Público Federal pediu na Justiça compensações aos indígenas pelo alagamento de parte de suas terras, e a ação foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, obrigando o governo federal a fazer obras como pontes, casas e áreas de contenção para minimizar os prejuízos. Diversos acordos, porém, não foram cumpridos até hoje, e uma ação de execução de sentença tramita na Justiça.

O governador Jorginho Mello (PL) anunciou no mês passado investimentos de R$ 20 milhões na comunidade indígena. O compromisso atende a demandas feitas há 40 anos. egundo o cacique, entre 1994 e 2006 foram erguidas 188 casas, mas as estruturas estão desabando devido aos alagamentos, por falta de obras de contenção.

— Não somos contra o fechamento das comportas, desde que a gente não seja tão prejudicado — explica.

A oposição dos indígenas ao fechamento das comportas levou o governo de Santa Catarina à Justiça, que concedeu liminar para que a operação fosse realizada.

PM chegou antes da ajuda prometida

Cléber Buzatto, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), afirma que os indígenas já tinham concordado no sábado com o fechamento das comportas, mas pediram ajuda do governo do estado. Na lista de pedidos, estavam a desobstrução das estradas, o fornecimento de três barcos e ônibus para ajudar no transporte, água potável nas aldeias e cestas básicas, além de uma equipe de saúde no local, já que a comunidade não consegue ir até a sede do município.

A Polícia Militar chegou antes da ajuda. O governo de Santa Catarina informou que a entrega de mantimentos e água potável começou ontem e o atraso ocorreu “após divergências na autorização para a entrega dos mantimentos”.

O cacique Camlem reconhece que as cestas básicas começaram a chegar. Mas há dificuldade na preparação dos alimentos, já que as moradias estão alagadas:

— O desafio agora é fazer e servir a comida nos abrigos — explica.

O plano de contingência do governo do estado prevê abrigos provisórios. Mas segundo Buzatto, isso não está sendo cumprido.

O fechamento das comportas levantou ainda discussão sobre a segurança da operação. A barragem está sem manutenção há anos.

No dia 4, a Defesa Civil de Santa Catarina informou que o fechamento poderia não ser seguro, uma vez que a barragem está sem equipamentos desde 2014. Em reunião com o Ministério Público Federal no domingo, o governo estadual informou que não há riscos e se comprometeu a entregar estudo à Justiça. Segundo a procuradora da República Lucyana Pepe, até 18 horas de ontem, no entanto, o documento não havia sido apresentado.

— O risco para os indígenas é de que, com a subida vertiginosa do nível das águas do rio, há inúmeros alagamentos, quedas de barreiras, isolamento de aldeias.


Fonte: O GLOBO