Objetivo do documento, entregue ao Congresso, é 'determinar responsabilidades', 'oferecer reparação' aos afetados e prevenir novos casos

O número de menores que sofreram abusos sexuais por parte de religiosos católicos na Espanha desde 1940 seria superior a 200 mil, de acordo com um primeiro grande relatório sobre este flagelo divulgado nesta sexta-feira por uma comissão independente.

O relatório não fornece um número exato, mas inclui a pesquisa feita a pedido da comissão, segundo a qual 0,6% da população adulta espanhola (em cerca de 39 milhões de pessoas no total) afirmou ter sofrido abuso sexual por parte de membros da Igreja Católica quando eram menores.

Ao contrário do que aconteceu na França, Alemanha, Irlanda, Estados Unidos ou Austrália, na Espanha, país com tradição católica enraizada, os resultados de investigações sobre a pedofilia no clero nunca haviam sido publicados.

A constituição da comissão independente, liderada pelo Provedor de Justiça, foi aprovada em março de 2022 pelos deputados do Congresso, que afirmaram querer “trazer à luz” a “conduta pessoal execrável cometida contra crianças e meninas indefesas” no seio da Igreja.

O relatório final da comissão, cujos objetivos eram determinar “responsabilidades”, oferecer “reparação” aos afetados e prevenir novos casos, foi entregue ao Congresso nesta sexta-feira pelo Provedor de Justiça, Ángel Gabilondo.

A Igreja Católica, que durante anos recusou qualquer investigação exaustiva, não quis participar na comissão, embora depois tenha fornecido documentos sobre casos de pedofilia recolhidos pelas dioceses.

Auditoria da Igreja

À medida que a pressão política aumentava, a Igreja anunciou uma auditoria aos casos em fevereiro de 2022, e encomendou-a a um escritório de advogados, que planeja concluí-la antes do final do ano.

Em junho passado, a Igreja, que se defende dizendo que implementou protocolos de ação contra os abusos e instalou gabinetes de “proteção aos menores”, reconheceu ter ouvido depoimentos de 927 vítimas. Dados os escassos dados oficiais, o jornal El País lançou em 2018 uma base que contabilizou 2.206 vítimas e 1.036 abusadores desde 1927.

A título de comparação, uma comissão independente em França contou 216.000 vítimas menores desde 1950, na Alemanha um estudo encontrou 3.677 casos entre 1946 e 2014 e na Irlanda mais de 14.500 pessoas receberam compensação financeira através de um dispositivo estabelecido pelo governo.

‘Válvula de escape’

O anúncio da publicação do relatório liderado pelo Provedor de Justiça foi bem recebido pelas vítimas e pelas associações que as representam.

Este documento “é um reconhecimento público de que as situações (de abuso) existem” e servirá para “finalmente dizer que esta não é uma questão oculta, não é uma questão vergonhosa”, disse José Alfonso Ruiz de Arcaute, que denunciou agressões sexuais numa paróquia de Vitória, País Basco, em 1982, quando tinha 13 anos.

— Significa uma válvula de escape para as vítimas, porque temos sido totalmente ignorados e minimizados durante décadas. Este relatório deve servir de estímulo para que os poderes públicos façam o seu trabalho de reparar os afetados — disse Juan Cuatrecasas.

Cuatrecasas é membro fundador da associação Infância Roubada e pai de um jovem abusado por uma professora numa escola católica entre 2008 e 2010 na cidade basca de Bilbao.

A Infância Roubada colaborou com a investigação, que “tem sido um processo limpo e transparente” em que foi dado “tratamento empático” aos entrevistados, disse Cuatrecasas, que espera que o relatório inclua pedidos feitos pelas vítimas, como colocar em terapias à sua disposição.

Outras vítimas foram mais cautelosas, como Francisco Javier Méndez, que, tal como Ruiz de Arcaute, ofereceu o seu testemunho à investigação sobre os abusos que sofreu quando menor com o seu irmão gêmeo, já falecido, por parte de um padre entre 1988 e 1989.

Se o relatório não for seguido da aprovação de uma lei no Congresso para cuidar das vítimas, “não adianta”, disse ele à AFP, porque “toda a dor que infligiram” não pode ser resolvida “apenas com palavras”.


Fonte: O GLOBO