Atrasos têm relação com escassez de dólares e reflexos no Brasil. Na reta final da corrida eleitoral, até a cotação do dólar blue perdeu referência nas casas de câmbio

Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina, no domingo, o clima é de caos e paralisia na economia vizinha. Com recessão e inflação de 138% em 12 meses, a crise respinga no Brasil. As exportações brasileiras de veículos despencaram em agosto e setembro, enquanto fabricantes de calçados temem que restrições recentes ao acesso a dólares atrasem, ainda mais, pagamentos dos compradores argentinos.

A dívida de empresas argentinas com importações não pagas poderá chegar a US$ 43,1 bilhões no fim do ano, estimou a consultoria Abeceb, a pedido do jornal La Nación. É praticamente o dobro do que havia no fim de 2021.

Os atrasos têm a ver com a escassez de dólares. Na semana passada, o Banco Central argentino (BCRA) perdeu US$ 650 milhões em reservas cambiais, conforme a Empiria Consultores. Nos cálculos da consultoria, as reservas estão negativas em US$ 6,8 bilhões.

Na reta final da campanha eleitoral, até mesmo a cotação do dólar blue — negociado no mercado informal — perdeu a referência.

As principais casas de câmbio informais, que são balizador do mercado paralelo, anunciam a cotação de 900 pesos por dólar, mas, nas ruas e nas cuevas dos fundos de lojas de Buenos Aires, a taxa estava entre 990 e 1065 pesos por dólar ontem.

— Estou comprando. Não vendo, porque estão muito abertas as pontas (a diferença entre a cotação de compra e a de venda). É terrível, não se pode trabalhar — contou ao La Nación um operador informal, sem se identificar.

Para conter a demanda, o BCRA congelou ativos em dólar dos bancos e estabeleceu mais restrições a importações, no último dia 12. As medidas poderão gerar mais atrasos no pagamento das importações, conforme a dívida estimada pela Abeceb.

Milei preocupa Haddad

O comércio com o país vizinho já vinha prejudicado pela crise dos últimos anos, mas piorou nos últimos meses.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que uma eventual vitória de Javier Milei, o candidato de extrema-direita que concorre à Presidência na Argentina, preocupa o governo brasileiro.

— É natural que eu esteja (preocupado). Uma pessoa que tem como uma bandeira romper com o Brasil, uma relação construída ao longo de séculos, preocupa. É natural isso. Preocuparia qualquer um... Porque em geral nas relações internacionais você não ideologiza a relação — disse Haddad em entrevista à agência Reuters publicada ontem.

Terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos EUA, a Argentina tem a particularidade de ser um mercado para a indústria, que tem dificuldades de competitividade internacional.

Os argentinos compram veículos, calçados, cosméticos e produtos de higiene do Brasil. Em muitos casos, são de multinacionais que usam as fábricas brasileiras para fornecer para a América do Sul. Na indústria automobilística, as montadoras adotam estratégia regional — unidades de Brasil e Argentina têm funções complementares.

Exportações da indústria para a Argentina estão em queda — Foto: Editoria de Arte

A Abicalçados, entidade dos fabricantes de calçados, informou ao GLOBO que as medidas do BCRA deverão “prejudicar ainda mais a já delicada situação”. “Alguns exportadores nos reportam atrasos de pagamentos excessivos, de mais de seis meses (180 dias)”, disse a entidade. “Muitas empresas deixam de exportar para aquele mercado, especialmente menores”.

A Argentina é o principal destino dos calçados brasileiros no exterior, mas as vendas vêm enfrentando obstáculos desde junho. Em número de pares, as vendas para a Argentina tombaram 11,7% no acumulado de janeiro a setembro ante os nove primeiros meses de 2022, diz a Abicalçados.

A indústria de higiene pessoal, que também tem no país vizinho o principal destino de suas exportações, não relatou agravamento dos problemas nos últimos meses, mas ressaltou que, desde 2020, a situação vem se mostrando “desafiadora”. “A principal dificuldade é a falta de divisas, consequência da escalada inflacionária”, afirmou a Abihpec, entidade do setor, em nota.

Pobreza na Argentina atinge 40% da população — Foto: Erica Canepa/Bloomberg

As exportações da indústria de transformação caíram 1,9% em valor de janeiro a setembro, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic). Em setembro, porém, tombaram 23,5% em valor, ante igual mês do ano passado, após queda de 15,3% em agosto.

A média diária de exportações da indústria de transformação nas duas primeiras semanas de outubro está 2% abaixo de igual mês do ano passado, segundo a Secex. As vendas de veículos estão piores: a média diária está 10% abaixo de outubro de 2022.

Queda na venda de carros

Segundo a Anfavea, entidade da indústria automotiva nacional, no início de setembro havia 20 mil automóveis nos pátios dos portos argentinos, esperando por liberação aduaneira — a demora nas autorizações tem sido usada, nos últimos anos, como medida para conter a demanda por dólares. No início do mês, após algumas liberações, a quantidade de carros caiu para 10 mil.

Por causa da crise na Argentina, a entidade revisou sua projeção para a queda nas exportações de veículos do Brasil este ano para 12,7%, bem acima dos 2,9% inicialmente projetados.

E há poucos sinais de melhora, afirma Lia Valls, coordenadora dos Estudos do Comércio Exterior do FGV Ibre. Como a crise é de difícil solução, as vendas da indústria deverão arrastar as exportações totais — com a superação da seca na Argentina, os atípicos embarques de grãos, como soja, dificilmente se repetirão em 2024.

— O efeito sobre o comércio só vai melhorar no dia em que a Argentina começar a se recuperar — comentou Lia, lembrando que as propostas de Milei, de rompimento com o Mercosul e adoção do dólar como moeda oficial, podem adicionar obstáculos. — Num mundo com grandes transformações e segmentações em termos geopolíticos, seria mais interessante vizinhos naturais terem uma frente comum, e Milei claramente já declarou que acha que o Mercosul não serve para nada.

Em nota, a Secex, do Mdic, informou que “tem mantido contato regular com setor exportador brasileiro para mapear os gargalos mais críticos, assim como tem feito gestões constantes junto ao governo argentino”.


Fonte: O GLOBO