Liderança indígena, que está no Rio para exposição no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, revela maior sonho: Nobel da paz e ver humanidade em harmonia

Recém-chegado ao Rio para inaugurar a exposição "Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos", no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, em comemoração aos 450 anos da cidade, o Cacique Raoni falou com exclusividade para O GLOBO onde criticou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pela demora do governo em atender às promessas feitas a ele no dia da posse, momentos antes de subir a rampa com o petista. 

Raoni disse que depois desse episódio não conseguiu mais contato com o presidente e afirma que o veto parcial do projeto do marco temporal, o atendimento à saúde dos povos indígenas e a retirada dos invasores estão aquém do esperado. 

“Ele está devagar. Não cumpriu o que me prometeu no dia da posse e por isso vou a Brasília bater na porta dele”. Durante a entrevista que durou mais de uma hora, Raoni, aos 91 anos, esbanjou saúde e lucidez nas suas ideias, e topou ir com a reportagem até o Parque Lage, para uma sessão de fotos, sempre disposto e com muita firmeza no andar. Ele revela o seu maior sonho: ver a humanidade em harmonia e vencer o Prêmio Nobel da Paz. Sobre a crise climática é pessimista. “Falei com os espíritos e sei que os rios da Amazônia vão secar todos, não vai demorar. Mas ainda temos uma chance”.

As perguntas e as respostas da entrevista foram traduzidas pelo neto de Raoni, Beptyk Metuktire, de 28 anos, da linguagem Jê, kayapó Mebengrokê.

Como você avalia os primeiros meses do governo na questão indígena?

O marco temporal vai ser muito ruim para nós. É o pior problema que os povos indígenas podem ter. Ele não foi idealizado por nós, mas sim por pessoas que têm ódio da gente, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, que incentiva o ódio contra gente. Isso não é bom: as pessoas que incentivam outras para que tenham ódio quanto ao próximo. Isso só traz intriga entre nós brasileiros. 

O Lula vetou parcialmente o projeto aprovado pelo Congresso, mas eu tenho vontade de chegar para falar com ele, para acabar com tudo isso. Porque esse ódio não vai cessar com essa aprovação parcial. Estou tentando falar com ele e não consegui. Ele precisa vetar totalmente e por isso vou a Brasília para ele me atender.

Davi Kopenawa diz que Lula está devagar com a retirada de invasores e na solução dos problemas dos povos indígenas. Você concorda?

Eu penso da mesma forma que o Davi pensa. Por isso não vejo a hora de chegar a Brasília para encontrar com ele para falar sobre essas questões. Desde a última vez que encontrei com ele, na cerimônia de posse, ele me prometeu que iria fazer ações em prol dos povos indígenas para que não existam mais essas ameaças e violência contra nós. 

E isso não está acontecendo. Eu também penso da mesma forma, ele está devagar sim. Por isso minha vontade de falar logo com ele, então vou lá fazer campana na sala dele até ser atendido. Pressioná-lo para ele cumprir o que prometeu para mim.

Cacique Raoni fala ao GLOBO durante entrevista — Foto: Domingos Peixoto

Por que você acha que ele não cumpriu as promessas?

Combinamos de trabalharmos juntos. Isso não está acontecendo. Não falamos mais (passaram-se dez meses). Por isso que tenho vontade de chegar rápido em Brasília para gente conversar sobre as questões indígenas para eu poder ajudar ele. Temos que trabalhar juntos para as coisas acontecerem. Sei que ele está sendo pressionado por deputados e ruralistas, eu sei como é. 

Mas a necessidade dos povos indígenas é urgente em vários pontos do país. Estão tendo muitas ameaças, violências e não estou vendo o governo cumprir seu papel de proteger contra a violência as comunidades indígenas de todo o país. Por isso eu quero chegar e ajudar o Lula e assim defender nossos povos. Vou cumprir meu compromisso aqui no Rio e sigo para Brasília porque eu tenho que conversar com ele, porque eu sei que ele precisa de apoio para colocar seus ministros, principalmente a Marina Silva, para agir.

Quando eu estive na aldeia agora eu tive a informação, por assessores do Lula, que ele tinha pedido uma reunião formal, por escrito. Mas sabe como é, né? Difícil pedir isso assim. Precisamos de ação, não de documentos.

O que o senhor acha do trabalho de retirada de garimpeiros pelas forças de segurança nas terras indígenas? Como estão atuando o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e Funai?

O trabalho do MPI e Funai está funcionando, disso não posso reclamar. Elas estão trabalhando com muita firmeza e muito compromisso. Em alguns cantos, poucos, garimpeiros estão sendo retirados. Eu fiquei sabendo que na terra dos munduruku devem sair logo. Mas está faltando em território nosso kayapó, dentro do Pará, no Gorotire. Muitos garimpeiros por lá, poluem a água, acabam com a caça. Não tem bonito entre os invasores.

Qual o maior problema do seu povo kayapó?

Meu território (aldeia Piaraçu, Mato Grosso) hoje está muito protegido nessa questão das invasões. Dentro do meu território não tem mais tanto, mas de outros parentes estão mais afetados por invasões. Muitas terras indígenas estão sendo invadidas e destruídas pelo invasor homem branco, a terra e a floresta estão destruídas. 

Dentro da nossa comunidade kayapó nosso pior problema é a saúde. Enfermeiros e técnicos são de baixa qualidade e não têm nos dado a atenção, não trabalham direito. Médicos e doutores também não estão focando no trabalho com os pacientes que precisam de atendimento. 

Outro dia cometeram um grande erro durante um parto cesárea na cidade, que fizeram errado, onde acabou por morrer a mãe indígena. Isso não é bom para nós. Se os não indígenas acharem que nós não precisamos viver, isso não vai ser bom. Por isso que quero ir a Brasília para falar com o chefe da Secretaria Especial Saúde Indígena (Sesai) para dizer o que estão fazendo de errado e melhorar o atendimento nas aldeias e no entorno dela, nas cidades.

O que você vai cobrar do Lula?

O primeiro assunto será sobre a demarcação das terras indígenas. Não estou feliz com o que foi feito. Muitos parentes precisam de território demarcado. Muitos deles estão sofrendo e vão sofrer ainda mais pela violência. A saída é a terra ficar com quem tem direito. Todas as lideranças têm me procurado para cobrar isso de Lula.

Cacique Raoni em visita ao Parque Lage durante entrevista para O Globo — Foto: Domingos Peixoto

Qual foi a marca que o governo Bolsonaro deixou para os indígenas?

Incentivou a violência contra indígenas de todo o país, principalmente contra os guajajara. As mortes de homens brancos que ajudam os povos indígenas, como aconteceu no Vale do Javari com Bruno Pereira e Dom Phillips, tiveram a marca dele. Passou o tempo dele, foi um período muito feio. E quem sentou o Lula na cadeira de presidente foi nós. 

Muito queriam tirar Bolsonaro. Por isso hoje estamos mais tranquilos, muitos dos nossos parentes gostam muito do Lula, no Xingu principalmente. Tivemos recentemente um desafio do marco temporal e confiamos nele. Ele foi lá e derrubou, todos ficaram contentes. Mas ainda precisa fazer muita coisa. E por isso vou até ele.

Você é uma personalidade reconhecida mundialmente e sempre foi uma referência quando o assunto é o cuidado com o clima do planeta. Você acredita numa solução para o futuro da humanidade?

Eu tenho muita preocupação com as novas gerações. O nosso problema, hoje, nós já estamos carregando, nós já estamos sofrendo, que é a questão de destruir a natureza. A derrubada das florestas é cada vez maior. Essa é minha preocupação com a humanidade. Porque se continuar destruindo tudo o que temos na terra, seus filhos, seus netos não vão conseguir respirar. 

Vai vir um aquecimento muito grande, global, e vai transformar o planeta, deixar sem ar. Não vamos respirar mais. Nós não vamos ter mais nada para nos proteger do sol, do vento, vai vir uma consequência muito grande.

A seca na Amazônia pode ser um reflexo disso? Acha que já é uma consequência?

Sim, já começou o período do fim e não é de hoje. Já faz tempo, mas agora pode não ter mais volta. Quando eu estava para viajar eu fui dormir e comecei a conversar com os espíritos e eles me disseram que a grande seca já está começando e que vai secar mais ainda. 

O espírito da água disse que vai engolir toda a água. Pedi para ele segurar um pouco de água para sobrevivermos. E nesse sonho fiquei muito preocupado. Eles têm uma visão muito ampla do que pode acontecer e do que pode evitar. Eles me alertaram que começou a seca e que vai aumentar ainda mais.

Qual o seu recado ao ver tudo isso acontecer?

Eu quero pedir a todos que precisamos de harmonia, união. Vamos ser amigos, ser irmãos para viver tranquilamente e seguir essa jornada nessa Terra. E quando você tem paz, você dorme bem, se alimenta bem, não se preocupa. Precisamos ser amigos, ser irmãos e nos respeitar. Esse é o único caminho da vida de nós como seres dessa Terra. 

E peço consciência para todos cuidarem da Terra, nossa mãe, que nos cuida, por isso precisamos cuidar dela também. Nosso dever é cuidar da Terra, caso contrário vamos desaparecer para sempre.

Quem é amigo do índio?

Há muito tempo Cláudio e Orlando Villas Boas ajudaram os povos indígenas naquela região. Claudio era muito querido, cuidava de nós, com os povos indígenas, se preocupava com a nossa situação de saúde. 

Foi um grande médico para nós, acolheu a todos. E dizia para todos nós: não vá para cidade, apenas os que estiverem ruim de saúde. Ele pensava nisso para proteger a gente do mal. Porque se todos fossem para cidade, muita gente morreria, mesmo dentro da floresta. Ele indicava os doutores para cuidar de nós.

Hoje tem alguém no nível deles?

Cláudio e Orlando cuidaram de nós, mas hoje não tem ninguém que cuida de nós, que proteja nós. Faz falta

Você está no Rio para apoiar a exposição de jovens cineastas kayapós. Como vê a importância deles?

É muito importante esse trabalho dos jovens seguirem esse caminho e conhecerem essa ferramenta para registrar a nossa cultura, músicas e histórias. Eles são a fonte do futuro para que seja lembrada nossa existência. Temos uma biodiversidade imensa em nosso território e uma cultura rica que precisa ser preservada.

E eles são o caminho para isso. Mostrar o povo kayapó é garantir a nossa sobrevivência. Uma vez o Cláudio (Villas Boas) me falou isso e nunca mais eu esqueci. Hoje os jovens já têm muito mais conhecimento do que eu, conhecem o português e sabem de tecnologia. Está nas mãos deles a nossa continuidade. Homem branco já destruiu muito nossa cultura.

Qual o seu maior sonho?

Eu gostaria muito de receber a medalha do prêmio Nobel da Paz. Eu sempre ouvi que meu nome foi citado para me entregarem. Eu desejo receber esse prêmio para poder continuar no fortalecimento da luta indígena.

Procurada, a assessoria da Presidência da República ainda não se manifestou.


Fonte: O GLOBO