Um ofício enviado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes fomentou um clima de desconfiança com a Polícia Federal, durante a apuração sobre o uso irregular do programa que espionou milhares de pessoas sem autorização judicial durante o governo Bolsonaro.

O uso do software para investigar políticos, jornalistas, advogados, servidores públicos e adversários do governo em geral levou à deflagração, na última sexta-feira (20), de uma operação que prendeu dois ex-agentes da Abin e fez buscas em diversos endereços, incluindo a sede da agência em Brasília e a sede brasileira da empresa israelense que fabrica o programa espião.

Outros cinco diretores da Abin foram afastados por ordem do Supremo – incluindo o secretário de Planejamento e Gestão, Paulo Fortunato Pinto, o terceiro na linha de comando da Abin. Na casa dele, a PF apreendeu US$ 171 mil em dinheiro vivo. Fortunato Pinto era superior hierárquico da área responsável pelas compras da agência.

Pouco depois de o inquérito ter sido instaurado, inicialmente na primeira instância da Justiça Federal, o diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti, pediu a Alexandre de Moraes que o inquérito passasse a correr no Supremo, porque a apuração poderia envolver segredos de estado e informações sensíveis à segurança nacional.

O pedido foi atendido. Mas o fato de o documento pedir que Moraes avaliasse "a possibilidade de determinar que a apuração seja centralizada nesse Supremo Tribunal Federal em conjunto com a investigação que está sendo conduzida pela Comissão de Sindicância instaurada nesta Agência” criou mal-estar.

Embora o texto não pedisse expressamente que a Polícia Federal fosse excluída da investigação, tanto na PF como no Supremo ficou subentendido que a Abin pretendia concentrar as apurações no resultado da sindicância interna que estava sendo feita sobre o caso – e não a investigação em curso na PF.

Comprado por R$ 5,7 milhões de reais sem licitação no governo Michel Temer, o First Mile permitia rastrear o paradeiro de uma pessoa a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões.

O uso irregular da ferramenta, revelado pelo GLOBO em março deste ano, gerou questionamentos internos na Abin e levou à abertura de um procedimento interno para apurar o caso.

Mas os depoimentos da sindicância foram inconclusivos e as planilhas fornecidas pela Abin ao Supremo Tribunal Federal só traziam os registros de 1800 dos 33 mil monitoramentos realizados pela agência por meio do First Mile entre 2019 e 2021 – e mesmo assim, sem identificar os titulares das linhas telefônicas.

Em resposta a um pedido do Supremo para fornecer todos os dados dos alvos monitorados, a Abin afirmou que precisaria quebrar o sigilo dos telefones para saber quem eram seus donos, o que despertou ainda mais desconfiança. Como era possível que o maior órgão de inteligência do Brasil estivesse monitorando 1 800 telefones sem saber de quem eram?

Na operação de sexta-feira, a PF localizou os dados que faltavam na sede da Cognyte, que fornece o First Mile, e constatou, na Abin, que os registros dos outros acessos tinham sido apagados do sistema.

Interlocutores da Abin com quem a equipe do blog conversou garantem que não há intenção de esconder os dados da PF e afirmam que o clima entre os dois órgãos é de cooperação. Pelo que se ouve nos bastidores da operação, não convenceram.

Um dos objetivos da investigação agora é saber quando esses registros foram apagados, quem fez isso e por que. A PF também busca descobrir quem ordenou o uso do sistema para o monitoramento indiscriminado de alvos, que uso foi dado às informações obtidas e quem teve acesso a elas.

Na semana que vem, o diretor-geral da agência, Luis Fernando Correa, deve depor na Comissão de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso sobre o caso.

Agora, além da PF e do Supremo, o Congresso também se juntará ao cerco à Abin.


Fonte: O GLOBO