Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu uma nota após conteúdos que prometem benefícios para os problemas no fígado ganharem espaço na internet

O Comitê Científico de Hepatites Virais da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu uma nota nesta semana em resposta a publicações que têm circulado na internet alegando um suposto benefício da prática da ozonioterapia no tratamento de hepatites (infecções no fígado) e de cirrose hepática.

No documento, o grupo de infectologistas rebate alegações feitas pelo blog “Saúde com Ozônio” e destaca que “a literatura científica atual não corrobora a ozonioterapia como um tratamento eficaz e seguro para a hepatite B crônica, hepatite C crônica e cirrose hepática, uma vez que ainda faltam ensaios clínicos bem conduzidos e resultados consistentes”.

Além disso, alerta que essas doenças demandam tratamentos específicos para minimizar o risco de complicações, e que se desviar das diretrizes clínicas estabelecidas pode “resultar em sérios riscos à saúde dos pacientes”. No caso da cirrose, por exemplo, não tratar adequadamente leva a um aumento do risco de câncer no fígado.

A SBI cita uma série de publicações feitas pelo blog. Em uma delas, o site menciona um estudo com 28 pacientes e conclui que “a ozonioterapia não só proporciona uma recuperação funcional para a Hepatite B, como também está associada a uma melhor resposta imunológica e à melhoria da qualidade de vida dos pacientes”.

A sociedade esclarece que “o número (de participantes) representa uma amostra pequena do ponto de vista científico”. Também menciona como pontos que enfraquecem o estudo a ausência de um grupo de controle, ou seja, de voluntários que não tenham passado pelo procedimento para que os desfechos fossem comparados; a falta de transparência nos critérios de seleção dos participantes e a omissão de informações sobre duração e intervenções feitas no processo.

“Essas lacunas metodológicas são cruciais e impedem a atribuição dos efeitos observados exclusivamente ao tratamento com ozonioterapia. Além disso, a publicação falha em fornecer informações essenciais sobre a proveniência do estudo, incluindo onde foi publicado, quem são os autores e se passou pelo processo de revisão por pares, elementos fundamentais para a validação científica de qualquer descoberta clínica. Qualquer proposta de novo tratamento deve ser rigorosamente comparada em termos de eficácia e segurança com as terapias convencionais comprovadas”, diz a SBI.

Os outros textos, além de publicações nas redes sociais, afirmam que a ozonioterapia tem “ação altamente eficiente contra a presença de vírus”, que melhora “as atividades metabólicas do corpo” e que estimula a produção de anticorpos. “No entanto, essas afirmações carecem de evidências científicas sólidas para respaldá-las, e a ozonioterapia não é amplamente reconhecida pela comunidade médica como um tratamento eficaz”, continua a Sociedade de Infectologia.

Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu uma nota após conteúdos que prometem benefícios para os problemas no fígado ganharem espaço na internet. — Foto: Reprodução / Instagram

Em relação à cirrose hepática, quadro crônico decorrente de lesões sucessivas no fígado, como as próprias hepatites ou o consumo exagerado de álcool, o blog cita um estudo com 52 pacientes da universidade egípcia de Assiut que apontaria um benefício. Para a SBI, porém, a “confiabilidade de um único estudo é limitada” e, por isso, essa eficácia não é reconhecida pela comunidade médica.

Venda de práticas em desacordo com regras da Anvisa

O blog “Saúde com Ozônio”, responsável pelas postagens rebatidas pela SBI, é mantido pelas Clínicas Doutor Ozônio, estabelecimento em São Paulo fundado pelo médico Ricardo Brunetti. O local vende pacotes de tratamento com ozonioterapia, que chegam a 2 mil reais, e cursos para profissionais da saúde administrarem a técnica.

Em seu site, a clínica diz ser a única de ozonioterapia “com atuação liberada pela vigilância sanitária do município de São Paulo”. No entanto, os tratamentos oferecidos estão em desacordo com as regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A autarquia permite o uso de equipamentos do tipo somente para a área odontológica e em determinados procedimentos de estética. Porém, em seu site, a Clínicas Doutor Ozônio cita benefícios para dores ortopédicas, fortalecimento do sistema imunológico, aumento do metabolismo para auxiliar na perda de peso, melhora na circulação, tratamento de infecções ginecológicas, de infecções urinárias, melhora da libido, alívio de sintomas da menopausa e de dores menstruais, entre outros – todos consideradas sem evidências científicas pelas principais entidades médicas brasileiras.

O que é a ozonioterapia? Quando ela é permitida?

A ozonioterapia é uma técnica que envolve o uso terapêutico do gás ozônio, que tem um potencial oxidante e bactericida. Nela, ocorre uma mistura do gás com o oxigênio, que juntos são aplicados de diversas maneiras no paciente. No entanto, segundo um parecer da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, “para que o ozônio seja eficaz como germicida, deve estar presente numa concentração muito superior àquela que pode ser tolerada com segurança pelo homem e pelos animais”.

A prática é permitida em alguns países e proibida em outros, como nos Estados Unidos. No Brasil, o cenário é complexo, com alguns conselhos regulamentando o uso, como o de Farmácia e de Biomedicina, embora a Anvisa libere os equipamentos apenas nos contextos específicos de odontologia e estética. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera a técnica experimental e, por isso,que pode ser realizada por médicos apenas em estudos clínicos.

Nova lei da ozonioterapia

Em agosto, a terapia veio à tona após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar uma lei, aprovada no Congresso Nacional, que libera todos os profissionais de saúde do país a praticarem a ozonioterapia como tratamento complementar. Logo em seguida, a Anvisa reafirmou que, ainda assim, os aparelhos no Brasil podem ser utilizados apenas nas seguintes ocasiões:

Área odontológica: tratamento da cárie dental – ação antimicrobiana; prevenção e tratamento dos quadros inflamatórios/infecciosos; potencialização da fase de sanificação do sistema de canais radiculares; Cirurgia odontológica: auxílio no processo de reparação tecidual.
Estética: auxílio à limpeza e assepsia de pele.

Em nota técnica no ano passado, a Anvisa destacou que o uso da ozonioterapia fora dessas indicações “configura infração sanitária”. Disse ainda que “há riscos à saúde oriundos da utilização indevida e indiscriminada desta tecnologia” e que não foram apresentados estudos que comprovem segurança e eficácia “para fins de aplicação médica ou de indicações de uso diversas daquelas descritas anteriormente”.

A nova lei foi criticada pelas principais entidades médicas do Brasil, como a Academia Nacional de Medicina (ANM) e a Associação Médica Brasileira (AMB). A ANM chegou a publicar uma carta aberta ao presidente em que disse ter recebido o então projeto de lei com “perplexidade e extrema preocupação” e que a ozonioterapia gera “um risco de ilusão em pessoas leigas, portadoras de doenças graves, como câncer, de que condutas dessa natureza possam ter efeito terapêutico”.

— Nós fizemos um grupo de estudos e verificamos que não existe nenhuma comprovação científica do uso da ozonioterapia como método de tratamento. Nós continuamos atentos como uma linha de pesquisa, algo experimental. Mas, como tudo na ciência, é preciso de estudo e, até agora, não existem trabalhos indicando que seja útil e seguro — afirmou o presidente da ANM, Francisco Sampaio, em entrevista ao GLOBO na época.

Ozonioterapia é fácil de ser encontrada

Apesar da legislação que limita a prática, os procedimentos de ozonioterapia são facilmente encontrados em anúncios nas redes sociais e clínicas privadas por todo o Brasil. As promessas terapêuticas englobam tratamento de câncer, melhora do sistema imunológico, terapia para problemas de reprodução, para dores crônicas, infecção pelo HIV, diabetes, entre uma série de outras doenças.

Páginas no Instagram divulgam ozonioterapia para tratamento do câncer e uma série de outras doenças, embora prática não seja permitida no Brasil. — Foto: Reprodução / Instagram

No Sistema Único de Saúde (SUS), em 2018, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, incluiu a ozonioterapia nas técnicas contempladas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS) – decisão criticada por especialistas na época. Porém, segundo o Ministério da Saúde, a utilização da técnica no SUS é restrita à área da odontologia, feita com aparelhos registrados e autorizados pela Anvisa.


Fonte: O GLOBO