No fogo cruzado, é negado a elas o direito fundamental à vida, à paz, à segurança e ao bem-estar

Uma troca de cartas entre Associação Pediátrica Palestina e a Associação Pediátrica de Israel, que circularam nos últimos dias, retrata mais uma vez a grande tragédia dessa guerra e de todas as guerras: o sofrimento das crianças.

A carta dos pediatras palestinos se dirige a Associação Pediátrica Internacional, pedindo que tome medidas urgentes que salvem as vidas de 2,2 milhões de civis inocentes, dos quais mais de metade deles são crianças privadas de necessidades humanas básicas como comida, água, abrigo e, mais importante ainda, saúde.

Relatam que a infraestrutura de saúde de Gaza está em colapso, os hospitais estão quase sem suprimentos, combustível, água e medicamentos essenciais. Falam das terríveis perdas e dos traumas psicológicos decorrentes. E pedem: o estabelecimento imediato de um corredor humanitário seguro; a entrega de combustível, suprimentos médicos e equipamentos para hospitais de Gaza; o acesso de equipes médicas para ajuda humanitária; e a evacuação urgente de civis e crianças gravemente feridos de Gaza para tratamento.

E aí cometem um grave erro: negam os crimes tenebrosos cometidos pelo Hamas, alegando “falta de evidências”.

Na sua resposta, a Associação Pediátrica Israelense concorda que todas as crianças de Gaza deveriam ter livre acesso a cuidados, “tal como todas as crianças de Israel e do mundo, incluindo as mais de 30 crianças israelenses que foram raptadas para Gaza, a maioria delas depois de terem sido testemunhas brutalizadas do massacre dos seus pais civis. Até hoje, estas crianças não tiveram acesso à Cruz Vermelha”.

Os israelenses remetem à diferença entre vítimas de guerra e as vítimas de crimes de guerra, e afirma sua decepção com a falta de reação dos palestinos às atrocidades do Hamas. E relembra que no estatuto de criação, a organização terrorista clama pelo assassinato de judeus em Israel e em todo o mundo. Afirma que carta da Sociedade Palestina está repleta de imprecisões ou mentiras produzidas pela máquina de propaganda do Hamas, ao mencionar o bombardeio do Hospital Batista como sendo por Israel, quando diversas investigações sérias a atribuem a uma falha num míssil disparado pela Jihad Islâmica, e que não 500, mas 50 pessoas morreram na explosão.

Afirma também que o Hamas (e não Israel) é o maior obstáculo à prestação de cuidados médicos às crianças de Gaza: “se fornecêssemos, como solicitado na carta da PSP, combustível para ‘benefício dos hospitais’, este seria roubado pelo Hamas para abastecer as suas necessidades militares... Temos, portanto, de ser muito seletivos ao permitir a ajuda humanitária a Gaza, pois poderia ser letal para nós”. Como o cimento trazido de Israel durante anos para construir escolas, hospitais, infraestrutura e habitação, mas que foi utilizado para a construção de centenas de quilómetros de túneis terroristas subterrâneos.

Termina dizendo que a população de Gaza recebe avisos constantes sobre bombardeios que Israel faz para tentar salvar vidas civis, algo nunca antes feito em tempos de guerra. Afirma que a guerra foi iniciada pelo Hamas e que não pode haver lugar para o terrorismo, desejando o melhor às crianças de Gaza: que sejam libertados da ditadura do Hamas, que vivam como crianças normais, que evitem serem criados como soldados desde os 4-6 anos de idade e enviados para campos militares, e que tenham livre acesso a cuidados de saúde.

Nessa guerra de versões é impossível dizer quem está certo: ambos os lados têm suas razões, todas elas terrivelmente trágicas.

Segundo reportagem da BBC, informações do ministério da Saúde da Faixa de Gaza (infelizmente controlado pelo Hamas, que não pode ser uma fonte confiável de informação), desde o início dos bombardeios de Israel após os ataques brutais perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro, 2.704 crianças morreram e mais de 5,3 mil ficaram feridas. As crianças seriam cerca de 40% do total de mortos no território.

A guerra de versões prossegue na reportagem: o Unicef classificou a situação de "mancha crescente nas nossas consciências" e pediu, em um comunicado, um cessar-fogo imediato. O embaixador de Israel na ONU afirmou que agências das Nações Unidas criaram uma "imagem falsa" da situação em Gaza ao aceitar alegações de autoridades palestinas controladas pelo Hamas.

Em Israel, mais de 30 crianças israelenses foram mortas pelo Hamas desde o início da atual guerra, e dezenas permanecem em cativeiro na Faixa de Gaza.

⁠É importante também considerar os tremendos impactos na saúde mental das crianças de ambos os lados⁠. Após uma operação em 2012, 91% das crianças de Gaza relataram distúrbios do sono durante o conflito; 82% sentiram raiva; 97% sentiram-se inseguras; 38% sentiram-se culpadas; 47% roíam as unhas; e 76% relataram coceira ou mal-estar.⁠ Em Israel, o medo da morte, as corridas para o bunker com sirenes quase diárias em muitas regiões fazem parte da rotina terrível dessa população. O TEPD, Transtorno de Estresse Pós Traumático, cria sofrimento par acrianças em ambos os lados.

⁠Até hoje o melhor texto eu li sobre a guerra foi escrito pelo pensador israelense Yuval Harari. Diz ele:

“Nada alarma mais o Hamas do que a possibilidade de paz. É por isso que ele lançou este ataque. O que o Hamas fez é um um crime contra a Humanidade no sentido mais profundo do termo. Um crime contra a Humanidade não é apenas sobre matar seres humanos. É sobre destruir nossa confiança na Humanidade. Quando você testemunha coisas como pais sendo torturados e executados na frente dos filhos, ou crianças pequenas brutalmente assassinadas, você pede toda a confiança nos seres humanos. E corre o risco de perder sua humanidade também.

As atrocidades cometidas pelo Hamas não tinham o objetivo de reiniciar o processo de paz... Em vez disso, a guerra lançada pelo Hamas impõe imenso sofrimento a milhões de palestinos. Impulsionado pelo seu fanatismo religioso, o Hamas simplesmente não parece se importar com o sofrimento humano – israelense ou palestino.

Em sua guerra contra o Hamas, Israel tem o dever de defender seu território e seus cidadãos, mas deve também defender sua humanidade. Nossa guerra é com o Hamas, não com o povo palestino. Os civis palestinos merecem desfrutar de paz e prosperidade em sua terra, e até no meio do conflito, seus direitos humanos básicos devem ser reconhecidos pelos dois lados. Isso se refere não apenas a Israel, mas também ao Egito, que partilha a fronteira com a Faixa de Gaza, que fechou parcialmente.

Os objetivos da guerra em Gaza devem ser claros. Ao fim da guerra, o Hamas deve estar totalmente desarmado e a Faixa de Gaza deve ser desmilitarizada, para que os civis palestinos possam viver vidas dignas no território, e os civis israelenses possam viver sem medo ao lado da Faixa de Gaza.

Até que esses objetivos sejam atingidos, a luta para manter a nossa humanidade vai ser difícil. Muitos israelenses são psicologicamente incapazes nesse momento de ter empatia com os palestinos. A mente está cheia com nossa própria dor, e não resta espaço nem para reconhecer a dor dos outros.

Muitas das pessoas que tentaram manter esse espaço estão mortas ou profundamente traumatizadas. Muitos palestinos estão em uma situação semelhante — suas mentes também estão tão cheias de dor que não podem ver a nossa.

Mas os que estão de fora e não imersos na dor devem fazer um esforço para ter empatia com todos os seres humanos que sofrem, ao invés de preguiçosamente verem apenas uma parte da terrível realidade. É o trabalho dos que estão de fora ajudar a manter o espaço para a paz. Nós depositamos esse espaço pacífico com vocês, porque não podemos mantê-lo no momento. Cuidem bem dele para nós, para que um dia, quando a dor começar a sarar, tanto israelenses como palestinos possam habitar este espaço”.

Só me resta torcer para que esse pesadelo acabe logo, e que as crianças volte a desfrutar de seu direito fundamental à vida, à paz, à segurança e ao bem-estar.


Fonte: O GLOBO