Exibição fica em cartaz até 25 de fevereiro e reúne curadores de sete nacionalidades e 285 obras de 170 artistas

Ao alcançar o primeiro andar da exposição “Histórias Indígenas” que abre hoje ao público no Museu de Arte de São Paulo (Masp) o primeiro impacto visual acontece antes mesmo do visitante atravessar as portas de vidro que dão acesso à galeria. Da icônica escadaria, do projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi (1944-1992), é possível mirar um mural preparado pelo artista mexicano Abraham Gonzáles Pacheco, feito diretamente na parede do museu. 

A obra, em tons de cinza e branco, em que se vê um indígena representado em traços difusos, foi feita especialmente para o Masp. A imagem ficará disponível à observação até o final da mostra, em 25 de fevereiro do ano que vem. E então será coberta por mãos de tinta para que o museu receba sua próxima exposição. 

Aos curadores, o artista contou que a existência do mural– a ser permanentemente escondido tão logo a exibição acabe — pode emular outras criações indígenas antigas, apagadas e “redescobertas” com o tempo. Pois, no futuro, pode ser que seus traçados sejam encontrados por alguém que se proponha a estudar aquela parede do museu.

Esse jogo entre o tempo presente e o passado é um importante eixo para a mostra que reune 285 obras de 170 artistas oriundos de quatro continentes. A curadoria conjunta abarca doze profissionais do Brasil, Peru, México, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Noruega. Trata-se de um trajeto pela arte indígena, com criações novíssimas que miram em temas atuais — caso da diversidade queer, vista nas criações digitais da neozelandesa Jessica Hinerangi, que se apresenta nas redes como a “sereia Maori” — até as mais estabelecidas criações, caso da urna funerária de cerâmica do povo marajoara que data do período entre o ano 400 e 1.400, disponível para visitação na sala brasileira da mostra. De tão sensível, o item foi um dos últimos a ser colocado em seu devido lugar na exposição.

A mostra, porém, não se propõe a fazer uma linha do tempo que dê conta da existência dos povos originários nos países que compõem a exposição, mas sim de construções, conflitos e relações específicas. Estão lá os movimentos de militância e resistência, a convivência com o ambiente, a criação da própria identidade e a percepação da passagem do tempo.

— Cada sala tem sua identidade e o público pode fazer as relações (entre os temas). Há paralelismos interessantes entre os espaços. Entendemos que os termos que cada curador escolheu tem a ver com as histórias que eles escolheram contar. 

Cada um tem sua perspectiva. Não faria sentido a gente, o museu, escolher as temáticas que eles deveriam trabalhar aqui— afirma Guilherme Giufrida, curador assistente do Masp, que trabalhou junto aos convidados nacionais e internacionais para o estabelecimento da exibição. A mostra, inclusive, viajará ao Kode, museu na Noruega, tão logo encerre sua temporada no Brasil.

Kapewë pukeni [Jacaré-ponte],2022. De Acelino Tuin Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU) — Foto: Daniel Cabrel

Para além da diversidade de épocas, há também uma profusão de tipos de obras de arte. Tapeçarias, fotografias, esculturas, pinturas em diversas técnicas e exibições em vídeo carregam o dinamismo da “histórias”. Na ala mexicana, chamada A construção do "eu" , por exemplo, destaca-se uma agigantada escultura de madeira que exibe uma criatura híbrida meio buda meio Chac Mool (um tipo de escultura maia) criada pelo pintor e escultor German Venegas. 

Da criação, brota a análise de que aquela população pode ser representada por diversas ascendências e religiosidades. Ao lado do gigante de madeira, se vê uma obra rara que mistura pintura e colagem da incontornável Frida Kahlo (1907-1954) datada de 1933, raridade no Brasil. A artista, embora não seja indígena, tem uma visão interessante sobre os povos originários, diz o curador Abraham Cruzvillegas.

— Ela se apropia da vestimenta tradicional. Nessa pintura, se vê um tipo de autoretrato mas com a artista ausente. Se vê somente sua roupa, seu vestido, que se relaciona com um povo indígena mexicano — afirma. 

— O que há nessa seção de mais importante é a maneira que os artistas e as artistas mexicanos se identificam como parte de uma cultura e de um povo. E a maneira de representar a identidade está sempre em crise. É interessante pensar como essa instabilidade cria uma poética e uma estética também em crise.

Cruzvillegas dá voz em especial às artistas mulheres, suas autorepresentações corporais e visões políticas. Há, por exemplo, um quadro que têm tons amarronzados em que se lê, em espanhol, “Canibal é o índio, o escravo, o proletário, o revolucionário”. A imagem, criada pela autora Minerva Cuevas, é feita da mistura de chocolate e água. O chocolate, vale dizer, na era pré-colombiana foi usado como moeda e até nos tempos atuais, a depender da produção, pode figurqar como um artigo de luxo.

Brasil

A exibição ocorre justamente em um momento no qual museus, galeiras e feiras de arte brasieiras têm aberto um inédito espaço aos criadores indígenas de diversas origens. Alguns países presentes na mostra, porém, já passaram por esse tipo de movimentação há decadas, o que foi atalho para a construção de movimentos indígenas estabelecidos no mercado de arte. 

Um exemplo é a produção de origem aborígene, na Austrália, há decadas presente no circuito artístico internacional. No Masp, essas produções australianas aparecem na sala "Histórias de pintura no deserto", com curadoria de Bruce Johnson-McLean. Trata-se de uma seleção de obras por vezes feitas em retalhos de madeira, em pranchetas, e também em telas. Uma presença inédita em exposições nacionais.

Bush-fire II [Incêndio silvestre II], 1972. De Clifford Possum Tjapaltjarri — Foto: National Gallery of Australia

Em outro compasso, a produção nacional ainda se vê mais contida no mercado interno e a criadores que se repetem nas diferentes mostras que foram montadas nos últimos anos. A curadora da ala brasileira da exposição do Masp, Kássia Borges Karajá — que trabalhou com Edson Kayapó e Renata Tupinambá na preparação do núcleo brasileiro da exibição — disse estar atenta a uma maior diversidade de nomes, justamente para trazer mais criações a uma posição de destaque.

— Pensamos em chamar o público para conhecer a arte indígena, mas aquele tipo que as pessoas não estão acostumadas a ver. Pensamos que é importante reunir novos artistas. Por isso, escolhemos um título do núcleo que aglomerasse a todos, chama-se "Tempo não tempo". E nessa criação deixamos claro que nosso tempo é diferente (do que o tempo de quem não é indígena) — afirma Kássia. — Para nós, o tempo tem a ver com nosso corpo, por exemplo.

E por falar em corpo, há em destaque na exposição um grafismo em tela que remonta as imagens corporais. A criação é do jovem artista Waxamani Mehinako. Na mesma sala, a passagem de épocas ainda é representada por uma multicolorida e vibrante pintura do coletivo Mahku, da qual Kassia faz parte. Na tela, um gigantesco jacaré faz as vezes de ponte sobre um rio que divide o passado e o presente. A obra é chamada de Kapewë pukeni (Jacaré-Ponte) e foi pintada por Acelino Tuin Huni Kuin.

— Nunca pensamos que éramos sós. Sempre achamos que há mais coisas. Naquela representação, passamos do antigo ao moderno. É o encontro com outros povos. Ali, o jacaré nos atravessa do antigo para o novo.


Fonte: O GLOBO