Atleta se despede das pistas em maratona na Bahia, quer se dedicar à família e aos estudos

“Só quero sentir tudo o que vier, quero me emocionar”. É assim, de coração aberto, que Henrique Avancini, melhor ciclista da história do Brasil, disputa a última competição da carreira. O bicampeão mundial de maratona mountain bike participa desde sábado do Brasil Ride, evento que se estende por sete dias e 500 quilômetros, entre Arraial D’Ajuda e Guaratinga, na Bahia (ontem, fechou na quinta posição). Escolhida a dedo, a maratona lhe permite vestir a camisa arco-íris. No ciclismo, o campeão mundial de cada prova tem o direito de usar a famosa rainbow jersey — a lycra branca com listras coloridas —, maior símbolo de conquista na modalidade.

— Em 2017, quando o Brasil Ride era disputado em dupla, corri com o tcheco Jiri Novak. Soube apenas na hora que aquela seria sua última prova. Para mim, o momento e a energia dele ficaram marcados. Trocamos a liderança com uma dupla italiana durante seis dias e, no último, o cara andou de um jeito... Gostaria de viver isso, pedalar pela última linha de chegada, sentir tudo o que vier — recorda Avancini, que se emocionou diversas vezes ao falar ao GLOBO sobre a despedida.

O ciclista decidiu pela aposentadoria em agosto, próximo ao Mundial da Escócia. Não contou para ninguém naquele momento porque sua decisão estava condicionada: ele precisava ganhar o torneio. E o título veio com uma prova irretocável. Depois de comunicar sua vontade, Avancini iniciou um tour de despedida por provas em locais importantes para ele. Na antepenúltima etapa da Copa do Mundo, em Snowshoe, nos Estados Unidos, mecânicos e rivais o receberam na linha de chegada levantando pneus de bicicleta. A homenagem é linda e rara.

— Quando fui para a Europa, ninguém sabia meu nome, nem me cumprimentava. Eu sempre quis ser respeitado pelos grandes do esporte. Não mirava ser famoso ou rico. Nestas despedidas, tenho recebido muito carinho — conta Avancini, que lançou um documentário (“O meu motivo”) em que destrincha a decisão.

O ciclista deixa as pistas com um currículo marcante: são 23 títulos brasileiros, dois mundiais (um com sua própria equipe, algo inédito para o Brasil) e cinco de Copa do Mundo, além de dois ouros em Pan-Americanos e dois em Sul-Americanos. Chegou ainda à liderança do ranking mundial, outro pioneirismo para o país. E foi o primeiro da História a vencer competições em âmbito mundial em três modalidades (XCC, XCO e XCM):

— Ganhei o Mundial da Escócia e parecia que estava anestesiado. Eu sobrava. A cada minuto, sentia uma confirmação maior sobre a minha decisão. Como se eu estivesse ganhando uma autorização divina. Foi, de longe, a melhor performance da minha vida. Cheguei muito emocionado, porque ganhar um título mundial é algo poderoso.

Avancini conta que, ao sentir essa emoção de novo, soube que era de fato o momento de parar. Isso porque o ciclista viveu a fase mais brilhante de sua carreira, entre 2019 e 2021, em depressão, quando nem as vitórias o faziam bem. Ele mesmo teve dificuldade para entender como um atleta número 1 do mundo e ganhando um bom dinheiro poderia estar infeliz. Não contou para ninguém e foi “matando seus fantasmas” com terapia e redirecionamento de metas.

A aposentaria se dá neste momento também porque Avancini não quer forçar a corda, se amargurar. Prefere parar feliz e realizado.

— É difícil explicar por que aquilo não me preenchia. Eu queria vencer. Só que, quando vencia, não tinha prazer, estava mal comigo mesmo. E é difícil para o atleta quebrar esse estigma de que “se está ganhando, está tudo certo”. É difícil mostrar vulnerabilidade. Mas, por trás do atleta, tem o lado humano. Para mim, o mais difícil foi perceber que não estava extraindo prazer do esporte.

TEMPO COM A FILHA

Avancini argumenta que é “fácil” escolher a inércia, manter o privilégio financeiro de que atletas de alto rendimento e com resultados costumam usufruir. Mas ele já havia entendido que os desafios não lhe completavam mais.

— Fico satisfeito com coisas simples. Materialmente falando, conquistei muito mais que sonhava. Tudo nesta minha decisão foi um exercício de libertação... Hoje, meus olhos brilham pela paixão que tenho pela vida, por não ser um cara amargurado. Posso fazer o que eu quiser. Sei que vou colocar o mesmo empenho daqui para frente no que surgir. E vai dar certo.

Os próximos objetivos já estão definidos: passar mais tempo com a filha, Liz, e se dedicar ao conhecimento.

— Quero ser um pai presente, estudar e começar uma nova vida. Um dia, se ainda tiver Google, a Liz vai poder pesquisar e entender o que foi essa baita jornada. E ela foi uma grande motivação. Sempre quis ser motivo de orgulho para ela. Por outro lado, quero ter uma vida de pai e filha, de mais tempo com ela. Não quero falhar na parte básica — reflete um Avancini em paz. — Quem eu toquei com minhas mensagens, toquei. Fiz o suficiente e meu máximo.


Fonte: O GLOBO