Obra preocupa pesquisadores da área ambiental, em razão dos elevados impactos que o asfaltamento pode ocasionar em uma das regiões mais bem preservadas do bioma

A forte seca que atinge o Amazonas desde o final de setembro reacendeu a pressão política pelo asfaltamento da rodovia BR-319, que, com cerca de 900 km, liga Manaus e Porto Velho. O argumento dos defensores da obra é a necessidade de reduzir o isolamento dos moradores da capital do estado, teria se agravado com a baixa dos rios. 

Construída durante a ditadura militar, no início dos anos 1970, a via foi abandonada na década seguinte e costuma ficar intransitável entre dezembro e maio por conta do lamaçal do período chuvoso. Há um mês, um grupo de trabalho foi criado pelo governo federal para estudar o assunto.

A pavimentação do meio da rodovia é apoiada pelo governo do estado e por parlamentares, mas preocupa pesquisadores da área ambiental, pelos elevados impactos que o asfaltamento pode causar em uma das regiões mais bem preservadas do bioma.

Pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Lucas Ferrante aponta que a obra pode contribuir para a crise climática, uma vez que o desmatamento com a pavimentação aumentaria a seca e os efeitos negativos dela, inclusive o isolamento territorial.

— O Amazonas não está isolado porque existem outras vias de transporte para a região. O Rio Amazonas ainda está navegável, o que mantém o tráfego e escoamento de mercadorias para Manaus — diz Ferrante.

O pesquisador acrescenta ainda que os municípios atualmente isolados pela seca não são ligados à BR-319. As obras teriam que ser ampliadas com estradas vicinais, o que, segundo ele, traria mais destruição à floresta.

O governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), disse ao GLOBO que a pavimentação é necessária por ligar Manaus ao restante do Brasil, reduzindo o isolamento por via terrestre do estado. Lima aponta que a obra facilitará o escoamento da produção local e atrairá novos investidores para a região. O governo de Rondônia foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos do jornal.

Nos últimos sete anos, o governo federal gastou R$ 572,9 milhões na manutenção e na conservação da estrada, entre 2016 e 2023, segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A pasta informou que não há Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental para as obras na BR-319 pelo fato de a via ser "considerada de interesse social e segurança nacional".

Ferrante afirma que o argumento apresentado pelo Dnit para justificar a ausência de um estudo não procede, porque a BR-319 "impacta negativamente mais de 18 mil indígenas", além de aumentar as disparidades em saúde pública, pelo crescimento de endemias, com a degradação ambiental.

O pesquisador aponta que a importância da estrada alegada pela pasta é um motivo pelo qual os estudos precisam ser realizados pelo departamento e que a via não é prioritária para a segurança do país, por ficar distante das fronteiras.

Presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho afirmou que o instituto aguarda o Dnit apresentar Plano Básico Ambiental e requerimento de licença de instalação para que a obra seja ou não autorizada. Uma licença prévia, com validade de cinco anos, já foi aprovada pelo órgão em julho de 2022. Ela consiste em uma etapa de discussão sobre a localização do projeto e sua viabilidade ambiental, não permitindo a efetiva execução das obras de pavimentação.

— Uma análise sobre o possível impacto do desmatamento está sendo feita pela equipe técnica do Ibama. Essa é uma estrada antiga, e passa, principalmente, por áreas sujeitas a inundações, uma condição para que o desmatamento não cresça tanto — diz Agostinho.

'Gasto perpétuo' e erros da ditadura

Ferrante avalia que a pavimentação da BR-319 coloca em risco o equilíbrio climático e ameaça o último grande bloco da Amazônia ainda intocado. O especialista aponta que o asfaltamento abre caminho para a conexão de metade do que resta em pé da floresta ao arco do desmatamento, fixado nas zonas sul e leste do estado.

Ao menos três estudos independentes, publicados pela USP, pelo Conservation Strategy Fund (CSF) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) com a Ufam, comprovam a inviabilidade econômica da via e, na avaliação de Ferrante, a ausência da apresentação de um projeto detalhado, que explique como será o investimento e a manutenção da estrada, é um agravante deste cenário.

— Questões importantes permanecem sem respostas claras. A falta de viabilidade provocará um gasto perpétuo em uma rodovia que não vai permanecer em pé. Seria como repetir o mesmo erro da ditadura, provocando um prejuízo bilionário aos cofres públicos, sem trazer os benefícios econômicos adequados para a população de Manaus — pondera o pesquisador da UFAM.

Trecho da rodovia BR-319 — Foto: Carole Alarcon

— Além disso, a governança e controle do desmatamento se mostraram inviáveis dada a extensão de ramais ilegais que superam em seis vezes a extensão da rodovia e conivência de órgãos de fiscalização como INCRA e IPAAM que tem facilitado a grilagem de terras na região.

Rios Voadores

Ferrante aponta que a pavimentação da rodovia deve incentivar o surgimento de estradas clandestinas e abusos de atividades ilegais, como o garimpo, e até legais, como o agronegócio. Além de provocar impactos na economia ao afetar a formação de Rios Voadores responsáveis por abastecer o sistema hídrico das regiões Sul e Sudeste do país.

— Pesquisas têm demonstrado que os beneficiários da pavimentação da rodovia são desmatadores ilegais, garimpeiros e grileiros de terras vindo de outros estados. Em uma reunião que participei com o presidente Lula, em novembro de 2022, e em uma segunda com o Ministério do Meio Ambiente, em março deste ano, fiz a recomendação técnica de que o Ibama não deve conceder a licença de instalação e ainda revogue a licença de manutenção, pelos impactos causados à floresta — diz Ferrante.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu o asfaltamento da BR-319 para garantir o direito de civilidade e de ir e vir da população do estado durante a campanha eleitoral. Lula voltou a abordar a questão em uma entrevista para emissoras de rádio da Região Norte no dia 3 de agosto ao afirmar que decidiu criar um grupo de trabalho para discutir a reconstrução da via.

Uma comitiva de ministros, que contou com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva (Rede), foi enviada para Manaus por Lula na semana passada para avaliar a situação no local.

Impactos para indígenas

Geógrafo e diretor da ONG Wildlife Conservation Society (WCS) - Brasil, Carlos Durigan explica que a construção da rodovia, entre 1972 e 1973, se deu a partir de uma estratégia do governo militar de integração do estado do Amazonas por meios de estradas, sem uma legislação apropriada ou o requerimento de estudos de impacto ambiental.

O especialista aponta que, na época, a ocupação do território ocorreu por meio de uma campanha massiva de doações de terras públicas - um processo de assentamento à beira das estradas - que trouxe tanto impacto social para os povos indígenas e populações ribeirinhas, integrados de forma violenta, quanto ambiental, ao contribuir para a devastação da floresta.

— É fato que as estradas não estão isoladas e que o desmatamento na Amazônia está muito associado com a abertura destes caminhos. Quando uma rodovia é asfaltada, forma-se ao menos um grande corredor de 100 km de largura de degradação.

Um estudo, coordenado por Ferrante, divulgado pela publicação Land Use Policy, demonstrou que a rodovia impacta 63 terras indígenas, que abrigam mais de 18 mil indígenas, sendo pelo menos uma etnia isolada. 

Nos cerca de 400 km de comprimento do “trecho do meio”, área correspondente à parcela mais preservada da floresta devido à dificuldade de acesso de desmatadores, o Ibama identificou sete Unidades de Conservação (UC), todas localizadas no estado do Amazonas. Segundo o Instituto, três dessas unidades são federais e as outras quatro estaduais.

O “trecho do meio” da BR-319 correspondente à parcela mais preservada da floresta influenciada pela estrada — Foto: Carole

Ao GLOBO, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) revela preocupação com a possível pavimentação por conta dos impactos, já observados como consequência das obras permitidas pela licença de renovação, emitida em 2016, para os mais de 18 mil indígenas da região.

Entre os pontos preocupantes, de acordo com a entidade, estão a especulação imobiliária, o abandono das populações ao longo do eixo da BR, o desmatamento ilegal, o aumento do índice de violência e o impacto para os povos isolados. Segundo a COIAB, as etnias isoladas não consentem qualquer tipo tipo de atividade que impacte o modo de vida deles.

A organização também aponta que as populações indígenas afetadas não foram devidamente consultadas, como previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Constituição Brasileira. Apesar disso, a licença prévia (LP) foi concedida em julho de 2022, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

— As audiências públicas ocorreram, porém, de forma online e de uma maneira que não se consegue chegar, de fato, nas populações que serão atingidas por esse empreendimento. Na época, a COIAB acionou o Ministério Público Federal para solicitar a suspensão das sessões e foi concedida a liminar, mas ela foi posteriormente derrubada com apoio do governo anterior — afirma Cristiane Baré, assessora jurídica da organização.

Na tarde do dia 21 de setembro de 2021, uma liminar da juíza Mara Elisa Andrade acolheu parcialmente o pedido do MPF, suspendendo as audiências públicas até o fim da pandemia. Entretanto, o DNIT recorreu e a decisão foi derrubada por uma suspensão de segurança proferida pelo desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) I'talo Fioravanti Sabo Mendes cerca de cinco horas depois.

O Tribunal acolheu o argumento de que a suspensão das sessões provocaria lesão à ordem pública, à saúde e à economia, além de apontar uma suposta necessidade da rodovia para transporte de insumos médicos para Manaus durante a pandemia.

Ao GLOBO, o MPF afirmou que as audiências públicas sobre o licenciamento da BR-319 foram prejudicadas por irregularidades na atuação do Dnit, como a apresentação de estudo de impacto ambiental incompleto, e pela impossibilidade da efetiva participação popular, dadas as circunstâncias da pandemia de covid-19 no Amazonas.

O órgão avalia que o prosseguimento dos atos administrativos relativos à obra da BR-319, sem que haja respeito aos critérios fundamentais estabelecidos, seria "subverter normas jurídicas de proteção ambiental e causar inestimáveis prejuízos à comunidade afetada".

— Embora a licença prévia tenha sido emitida, ainda não está definido se realmente as obras de recuperação do trecho do meio serão executadas. O recurso do MPF contra a decisão que suspendeu a liminar está pendente de julgamento pelo tribunal há quase dois anos. Além disso, o próprio Ibama pode anular ou simplesmente não renovar a licença prévia, se entender que não foram observados os requisitos legais — explica Rafael Rocha, procurador da República no Amazonas.

Escoamento de produção

Travessia da balsa para a RDS Igapó-Açu, unidade de conservação atravessada pela BR-319 — Foto: Carole Alarcon

Para Alexander Less, pesquisador da Manchester Metropolitan University, o argumento de que a pavimentação da rodovia aumentaria a competitividade de produtos de Manaus por reduzir o custo do frete para o centro-sul do Brasil não se justifica pelo fato de a maior parte da produção local não ser perecível. 

Nesta realidade, a redução do tempo de envio em alguns dias não faria uma diferença significativa e o transporte por meio de navios pelo rio Madeira se mostra mais eficiente em termos de consumo de energia e custo de mão de obra do que o embarque em milhares de caminhões, independentemente da rota rodoviária.

— Quem ganharia com a pavimentação da BR-319 seriam aqueles que, por meio de apoio político, seriam capazes de receber o crédito da verba federal para a reconstrução da via, sem que haja a contribuição com recursos diretos do estado do Amazonas — avalia.

* Estagiário sob supervisão de Daniel Biasetto


Fonte: O GLOBO