Em entrevista ao GLOBO, o pesquisador do IPEA Marcelo Medeiros aponta raízes e possíveis soluções para o conflito distributivo no país: 'Só educação não basta para reduzir desigualdade'

Pesquisador do Ipea e atualmente professor visitante na Universidade Columbia, em Nova York, o sociólogo Marcelo Medeiros revela o tamanho do conflito distributivo no Brasil, onde a desigualdade está concentrada no topo.

No livro “Os ricos e os pobres. O Brasil e a desigualdade”, que chega às livrarias hoje, ele mostra que, se tirarmos os 10% mais ricos da pirâmide de distribuição de renda, teríamos “um país igualitário”.

Em sua opinião, não existe solução mágica: reduzir a disparidade de renda no Brasil, entre as maiores do mundo, “vai dar trabalho, custar caro e consumir muito capital político”.

Quais as consequências da desigualdade maior no topo?

Têm implicações na maneira de fazer política, de como a desigualdade entra nessa conta. Essa preocupação tem que estar em tudo: na decisão sobre juros, nos subsídios a empresas, na legislação trabalhista, em absolutamente tudo. Olhar só o crescimento total da economia é ser negligente em relação à desigualdade.

No geral, o debate sobre o crescimento no Brasil é sobre o crescimento total, não se discute se é um crescimento pró-pobre ou pró-rico. Tem de olhar o crescimento pela distribuição, mudar a perspectiva.

Como resolver essa desigualdade histórica?

Não existe uma solução mágica para um problema desse tamanho. Vai dar trabalho, custar caro, consumir muito capital político para enfrentar os conflitos distributivos que não devemos subestimar. Pessoas vão perder e vão disputar para não perder. Não vão ser coisas isoladas, não vai ser só educação, não vai ser só tributação. Vai envolver coisas em grande escala. Sem contar que teremos uma restrição ambiental que vai limitar nossa capacidade de crescer.

Como a tributação pode diminuir a desigualdade?

Temos uma renda muito concentrada no topo, e a estrutura tributária é ruim do ponto de vista da desigualdade. Temos que melhorar a taxação sobre patrimônio, melhorar o IPTU. Tributamos o imóvel, não a pessoa. Uma pessoa que tem dez casas paga o mesmo que a pessoa que tem só uma casa. Quem tem imóvel financiado, acaba pagando imposto sobre uma dívida. Patrimônio representa metade da riqueza. O ideal seria tributar a riqueza líquida, juntando imposto sobre renda e patrimônio.

No seu livro, há o alerta de que a educação é importante, mas não é suficiente para reduzir a desigualdade. Por quê?

A educação é importante mesmo sem efeito direto na desigualdade. Se o objetivo é reduzir a desigualdade, é preciso expandir muito o ensino superior nos cursos de elite: Engenharia, Economia, Medicina. Ensino básico tem efeito muito pequeno. Mesmo assim, o resultado é lento, leva mais de três décadas. Vamos esperar três décadas para reduzir a desigualdade? Educação é necessária, mas é insuficiente. Educação superior custa caro, é uma imensa pressão de custos. A sociedade vai ter que pagar, e aí tem que mexer no sistema tributário.

Capa do livro de Marcelo Medeiros, Os Ricos e os Pobres — Foto: Divulgação

Qual o efeito de reduzir a desigualdade de gênero e raça?


Reduzir à metade a desigualdade de raça e gênero tem mais efeito do que dar ensino básico para população inteira. O que está por trás? Existem desigualdades no plural. A sociedade é muito complexa. Parte importante da desigualdade é racial, principalmente entre os mais ricos.

E como a política entra nesse debate?

A solução não é só técnica, é política. As medidas de pobreza, a própria ideia de PIB per capita é negligente em relação à desigualdade. Historicamente, um quarto do crescimento anual vai para 1% da população. Portanto, nossas políticas são voltadas para o 1%. Metade do crescimento vai para 5% da população. Toda nossa discussão é sobre um crescimento que está sendo apropriado pelos 5% mais ricos.

Do fim da década de 1990 até a crise da 2014, a renda da metade mais pobre crescia mais rapidamente do que a do restante da população. Vimos isso também em momentos antes do Golpe de 1964. Mas começa a cair, logo depois do Golpe. Mudar isso vai consumir muito capital político, muita mobilização. Nessa discussão sobre tributação, há lobbies imensos que são a parte resistente. Sempre vai ser assim. A mobilização política tem que ser forte.

Como a transferência de renda tem impacto na desigualdade?

É a melhor política para combater a pobreza, melhor que educação. Tem que aumentar a cobertura e valores da assistência social se quiser levar a sério a meta de erradicação da pobreza no Brasil. Calibra, aumenta a assistência de um lado e a tributação progressiva de outro. Mas há limitações (fiscais), temos que discutir subsídios, o sistema previdenciário.

Sem os 10% mais ricos, o Brasil seria um país igualitário. A desigualdade brasileira está concentrada no topo. O resto, a grande massa da população brasileira, ela já é muito igualitária. A maior parte dos não-pobres é parecida com os pobres e fica entrando e saindo da pobreza. A desigualdade está entre os ricos e o resto e dentro dos ricos. Isso vai requerer políticas com muita progressividade. Mais do que isso. A maior parte da renda entre o 1% mais rico é do capital.

Não pode haver fuga de capitais?

Cerca de 90% da riqueza brasileira estão entre o 0,5% e 1% da população. O custo social é muito menor do que tributar pobre. Não vai ser fácil, vai ter resistência. Mas a taxação não deve ser tratada como tabu. Não se deve bloquear a discussão por causa de um medo ingênuo e sem fundamento sobre fuga gigantesca de capital. Três quartos da riqueza não podem ser deslocados. São empresas, máquinas, fazendas. Um terço do Ibovespa (índice da Bolsa brasileira) é Petrobras e Vale.

O que é ser pobre no Brasil?

Volta e meia, a gente escuta que se gasta demais com assistência social, que o nosso nível de desenvolvimento não permite. No livro, quis mostrar qual o custo de não expandir e limitar a provisão do serviço público.

Tratamento para infecção branda envolve duas doses de penicilina, R$ 28. Isso significa que uma mãe pobre (que ganhe R$ 14,50 por dia de acordo com a linha de pobreza de países de renda média) que precise comprar o remédio para a filha terá de passar dois dias sem comer. Comprar moto para fazer entregas. Impossível. O pobre precisa economizar 30 anos para comprar uma moto com dez anos de uso.

Quis dar uma ideia das escolhas cruéis que família pobre tem de fazer. A pergunta que tem que ser feita é: “Prefiro que as pessoas continuem passando fome para comprar remédio por que não dá para aumentar o gasto em social no Brasil?” Temos que entender as consequências do que está em jogo.


Fonte: O GLOBO