Números obtidos pelo GLOBO mostram uma média de 126 ocorrências por mês
No dia 25 de junho, um homem com registro de CAC (sigla para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) de Londrina, no Paraná, ligou para a polícia e contou que havia sido rendido por um assaltante armado, que lhe roubou duas pistolas e um fuzil comprados legalmente, com autorização do Exército.
Sem encontrar qualquer vestígio do autor do roubo, os policiais, ao investigar o caso, descobriram que o CAC havia mentido com a intenção de esconder a venda de armamentos para o tráfico de drogas. Na casa do homem, que passou a responder por associação criminosa, comunicação falsa de crime e venda ilegal de arma de fogo, foram apreendidas 18 armas.
O caso no Sul do país exemplifica uma prática que, segundo autoridades policiais e especialistas em segurança pública, tem se tornado frequente: armas compradas legalmente por CACs vão parar nas mãos de bandidos.
O caso no Sul do país exemplifica uma prática que, segundo autoridades policiais e especialistas em segurança pública, tem se tornado frequente: armas compradas legalmente por CACs vão parar nas mãos de bandidos.
Números obtidos pelo GLOBO mostram que a quantidade de artefatos roubados, furtados ou perdidos da categoria atingiu em 2023 um patamar recorde em relação aos últimos anos, com uma média de 126 ocorrências por mês, o equivalente a quatro a cada dia.
Dados de ocorrências envolvendo armas de CAC's — Foto: Editoria de arte
Foram registradas 1.259 ocorrências do tipo entre janeiro e outubro. O número é próximo das 1.368 armas roubadas, furtadas ou extraviadas ao longo de todo o ano passado — média de 114 por mês —, quando já havia sido recorde.
Procurado, o Exército afirmou não ser responsável por investigações de furto ou roubo de armas de CAC, porque a fiscalização de produtos controlados cabe à “polícia administrativa” (como a PM ou a Polícia Rodoviária Federal). “O Exército Brasileiro tem atendido, em todas as oportunidades, as demandas de informações provenientes das Forças de Segurança Pública, sempre no intuito de colaborar exaustivamente para o esgotamento das investigações”, diz a nota da corporação.
Regras mais brandas
O aumento de casos nos últimos anos ocorreu na esteira da flexibilização das regras para CACs terem acesso armas. No governo Jair Bolsonaro, houve uma série de decretos que abrandaram exigências e aumentaram a quantidade de artefatos e munições que cada um poderia comprar.
Entre 2019 e 2022, 5.014 armas foram furtadas, roubadas ou extraviadas desses caçadores, atiradores e colecionadores — um crescimento de 85% na comparação com os cinco anos anteriores, quando a política de incentivo ao porte de armas de Bolsonaro ainda não havia sido adotada.
Até 2017, o número de armas roubadas ou perdidas de CACs ficava num patamar abaixo de 600 por ano. A partir de 2018, o índice começou a crescer, atingindo o ápice em 2022.
As autoridades relacionam o aumento à maior circulação de armas. Mas outro motivo já descoberto para esse crescimento é a simulação do roubo de armas regulares, com o intuito de vendê-las ao crime organizado.
Em março, a Polícia Civil do Espírito Santo descobriu que um fuzil 5.56 apreendido em posse de uma quadrilha de traficantes em Vila Velha constava como furtado no sistema do Exército. A arma estava registrada em nome de um CAC que havia obtido o certificado em 2021, graças a um decreto de Bolsonaro no início do seu governo. Esse tipo de calibre era restrito até então às forças de segurança.
Segundo a polícia capixaba, o CAC fornecia equipamentos para traficantes de Vitória e Vila Velha. Quando foi preso, o homem negociava a venda de um outro fuzil e se preparava para comprar mais armamentos, de acordo com as investigações.
No mercado legal, a arma extraviada foi comprada por cerca de R$ 20 mil. Já aos traficantes, acabou repassada por R$ 70 mil, segundo o inquérito policial — um lucro de R$ 50 mil. De acordo com a Polícia Civil, o fuzil foi usado em confrontos entre facções rivais e tiroteios contra a Polícia Militar, antes de ser apreendido pelas autoridades.
O método não se restringe apenas ao Espírito Santo. Reportagens do GLOBO publicadas em abril revelaram como milícias do Rio de Janeiro e facções de São Paulo passaram a utilizar laranjas com certificados de CACs para ampliar os seus arsenais.
Os especialistas apontam que o número elevado de armas extraviadas neste ano pode ser considerado uma tentativa de “legalizar” o desvio dos artefatos ao crime organizado.
— A quantidade de armas em circulação mais do que dobrou em quatro anos. É natural um aumento no número de furtos e roubos. O que me preocupa é a possibilidade de o registro de furtos estarem sendo usados para mascarar o desvio de armas para o mercado ilegal — disse o policial federal Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Embora tenha revisto a política de Bolsonaro, o presidente Luiz Inácio Lula Silva manteve a permissão para que donos de fuzis e pistolas 9 mm (que passaram a ser novamente de calibre restrito) continuassem com as armas. Mas eliminou o porte de trânsito e diminuiu o tempo de validade das licenças — o que foi visto como um desestímulo para manter os arsenais em casa.
Um decreto de Lula de julho prevê que o Ministério da Justiça lance um programa de recompra especial “destinado à aquisição de armas de fogo que se tornarem restritas após a publicação deste decreto”. Mas o programa ainda não saiu do papel e precisa de dotação orçamentária. Segundo a pasta, “os detalhes quanto ao orçamento, prazos e perfil das armas prioritárias estão sendo definidos”.
Valor baixo
Uchôa alertou que o ideal seria o governo federal fazer uma nova campanha de entrega voluntária de armas e aumentasse o valor oferecido por cada. Atualmente, o programa de entrega voluntária de armas paga R$ 450 para fuzis ou pistolas 9 mm — valor bem abaixo do mercado, onde esses artefatos custam de R$ 6 mil a R$ 20 mil.
— É preciso ter uma porta de saída, senão as armas vão para a ilegalidade. Entre passar para o governo por um valor baixo, vão vendendo para o ilegal por dez vezes mais — diz.
O gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, avalia que mesmo recorde, os número ainda pode estar subnotificado, uma vez que desvios registrados em delegacias nem sempre são comunicados ao Exército:
— Na prática, estamos tendo não só mais armas passando do mercado legal para as mãos do crime, mas especialmente armas mais potentes. Bolsonaro, com a anuência do Exército, liberou várias armas restritas a civis, como carabinas semiautomáticas e fuzis.
Fonte: O GLOBO
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