Bioma teve redução de 59% no desmatamento nos oito primeiros meses de 2023 após dois anos consecutivos de aumento

A derrubada da floresta parte o coração de muita gente. Mas é a dor no bolso de quem bota as árvores abaixo um dos principais motivos para a redução de 59% no desmatamento registrada nos oito primeiros meses de 2023 pelo Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) da Mata Atlântica em relação ao mesmo período de 2022.

— A Mata Atlântica segue na UTI, a meta é desmatamento zero. Porém, com medidas como bloqueio do crédito a desmatadores, cancelamento do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a intensificação dos alertas, da fiscalização e das multas conseguimos uma redução significativa, após dois anos consecutivos de aumento no desmatamento — destaca Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da SOS Mata Atlântica.

Os dados do SAD são consolidados na plataforma MapBiomas Alerta, resultado de uma parceria entre a Fundação SOS Mata Atlântica, a Arcplan e o próprio MapBiomas. O SAD tem apoio do Bradesco e da Fundação Hempel. O sistema consegue detectar desmatamentos de bordas de floresta e áreas derrubadas de até dez metros. É chamado efeito formiga, que corrói a floresta de árvore em árvore.

— Os bancos consultam o SAD para ver se uma determinada área tem alerta de desmatamento na análise de concessão e bloqueio de crédito. E isso tem ajudado muito a combater a destruição da floresta. É bom para o bioma e para as instituições financeiras, que não correm o risco de conceder empréstimos para produtores que podem ter suas áreas embargadas por infringir a Lei da Mata Atlântica — afirma Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas.

Desmatamento cai na Mata Atlântica — Foto: Editoria de arte

Os bancos públicos têm acordos com o SAD. O Banco do Brasil, desde 2021; e o BNDES e a Caixa, a partir de dezembro de 2022. Rosa explica que os bancos privados não têm acordo, mas podem consultar gratuitamente o SAD.

— Os acordos são mais importantes para os bancos públicos, pois eles precisam ter uma regra para incorporar os dados oficialmente. Mas os bancos privados consultam também porque, se financiarem para uma área que corre risco de embargo, poderão ter problemas para receber — salienta Rosa.

A diminuição é significativa, mas o bioma é o mais devastado do Brasil. A Mata Atlântica é a maior colcha de retalhos do país, constituída por mais de 2,8 milhões de fragmentos, segundo o MapBiomas. Destes, 53,3% medem até 10 hectares.

Se considerados todos os retalhos de floresta com mais de 1 hectare (um campo de futebol), restam 24% do bioma. Se contabilizados fragmentos acima de 3 hectares — ou três campos — há apenas 12,4% de Mata Atlântica. Esse percentual se reduz para 7%, se considerada somente a floresta contínua íntegra, acima de 100 hectares.

A área desmatada é de 9.216 hectares, se analisados somente os 15 estados da classificação do IBGE, que considera apenas limites geográficos contínuos. Na área de aplicação da Lei da Mata Atlântica, que inclui toda a vegetação do bioma e abrange os encraves na Caatinga e no Cerrado, a redução foi menos da metade: 26%.

Respeitada a lei, o número de estados cresce de 15 para 17, com a inclusão de Ceará e Piauí. Nestes dois, toda a Mata Atlântica é encrave. Há ainda encraves em Bahia, Minas Gerais e no Mato Grosso do Sul.

Os estados que mais e menos desmatam a Mata Atlântica

Na contramão do país, o Piauí registrou o maior aumento e este foi de 148%. Incluindo a maior área desmatada do bioma, 3.667 hectares. Os estados onde houve a queda mais significativa no desmatamento são Paraná e Santa Catarina. O primeiro teve redução de 64% (de 2.763 para 992 hectares desflorestados); e o segundo de 66% (de 1.816 para 600 hectares desflorestados).

— Mas Minas Gerais, Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul, principalmente na transição com o Cerrado e a Caatinga, apresentam taxas inadmissíveis de desmatamento. Estamos muito longe de fazer a nossa parte de cumprir o Acordo de Paris e do compromisso voluntário do Brasil de alcançar o desmatamento zero em todos os biomas até 2030 — salienta Guedes.

Área da Mata Atlântica desmatada por estado — Foto: Editoria de arte

Ele acrescenta que a Lei 11.428/2006, conhecida como Lei da Mata Atlântica, é a única legislação brasileira a tratar exclusivamente de um bioma. Graças a ela, o desmatamento na Mata Atlântica caiu consideravelmente e, desde sua aplicação, a floresta vem se regerando em áreas abandonadas ou restauradas.

Não à toa, a Mata Atlântica foi escolhida como área de destaque pela Década da Restauração de Ecossistemas da ONU. Há muito o que restaurar. Para que a floresta atlântica saia da UTI é preciso que recupere ao menos 30% de sua área original ou 40 milhões de hectares. Hoje está em pouco mais de 28 milhões de hectares.

Evolução da cobertura florestal da Mata Atlântica — Foto: Editoria de arte

— Restaurar a Mata Atlântica é melhorar o clima das cidades, aumentar a oferta de água, de lazer, de qualidade de vida e também uma oportunidade de negócios. O Brasil pode dar um exemplo para o mundo, com benefícios diretos para a população — ressalta Guedes.

Mata desaparece no Piauí

Uma floresta de dimensão semelhante à do Parque Nacional da Tijuca (3.953 hectares) desapareceu este ano em Alvorada do Gurguéia, no sertão do sul do Piauí. Com 3.677 hectares, a área é a maior desmatada este ano em toda a Mata Atlântica, bioma onde uma derrubada de 40 hectares já é considerada grande.

Sua história resume à do avanço da fronteira agrícola sobre as florestas, do desperdício de água e da persistência da pobreza nas frentes de desmatamento. E, segundo os especialistas do SAD, o desrespeito à Lei da Mata Atlântica por governos estaduais, que só consideram a classificação do IBGE e, assim, autorizam derrubadas.

O desmatamento não tinha autorização do Ibama, mas conseguiu licenciamento pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar). A mata era um encrave, como a ciência chama os remanescentes de Mata Atlântica que resistem como ilhas em meio ao Cerrado e à Caatinga, graças a condições ambientais raras e únicas. Foi derrubada para dar lugar a plantações. Estas, sobretudo de soja, avançam em todo o Matopiba (acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a maior fronteira agrícola da Terra.

Ali, a generosidade da natureza e a miséria humana andam juntas. Alvorada do Gurguéia e os demais 86 municípios do Vale do Rio Gurguéia ficam sobre a Bacia Sedimentar do Rio Parnaíba, a terceira maior reserva de água subterrânea do Brasil e a maior do Nordeste. A pujança é tamanha que a água jorra de poços a até mais de 20 metros de altura sem precisar de bombas.

São aquíferos tão hermeticamente fechados, que basta furar que a água sobe em jato. É um mar de água doce sob o solo ressecado do sertão. Essa água permitiu por milênios a existência da Mata Atlântica e agora atrai plantações.

Há na região mais de 300 poços jorrantes e se estima que mais de 260 milhões de litros de água sejam despejados por dia, sem grande aproveitamento. O mais famoso deles, o Violeto, fica justamente em Alvorada do Gurguéia, a 511 km da capital Teresina, onde a pobreza da população contrasta com a riqueza natural que literalmente se derrama em desperdício.

Com pouco mais de 5.000 habitantes, saneamento em apenas 1% deles e vias públicas sem urbanização, tem Índice de Desenvolvimento Urbano (IDH) baixo, apenas 0,578. O município tem 2.131 km2, quase o dobro da cidade do Rio de Janeiro, com seus 1.200 km2.

E essa não é a primeira vez que Alvorada do Gurguéia chega ao primeiro lugar no ranking de maiores desmatadores da Mata Atlântica, em 2014-2015 ocupou a mesma posição. A floresta tomba para dar lugar a soja, milho, cana e melancia.

O município não tem nem 30 anos, irá completar três décadas em 26 de janeiro. É mais novo que o Violeto, que foi perfurado nos anos 1970 do século passado e chega a mil metros de profundidade. Ele chegou a jorrar a 60 metros de altura. Hoje a água sobe a 20 metros. E, como os outros mais de 300 poços do tipo, um símbolo do desperdício de água no país.


Fonte: O GLOBO