Total equivale a uma média de R$ 300 milhões ao ano; enquanto isso, recursos pagos em medidas de prevenção pelo governo federal chegaram a cerca de R$ 1,1 bilhão

Por volta das 15h do primeiro domingo de setembro deste ano, o produtor de eventos Jorge Fronchetti, de 41 anos, morador da pequena Muçum (RS), percebeu que as águas do rio Taguari subiam rapidamente. A água tinha cheiro forte de lodo, contou. 

Como a chuva não parava, ele decidiu levar os eletrodomésticos para a parte de cima do sobrado onde mora com a mãe, a 400 metros do rio. Cerca de sete horas depois, a lama já passava pela porta. Foi quando começou a receber mensagens no celular de parentes e vizinhos com informações como "meu pai está no telhado, minha avó está no telhado". No resto da noite, faltou luz e a internet caiu, disse.

— De manhã, não havia mais sinal de ruas, o cemitério estava alagado, as pessoas em estado de choque, gente e animais desaparecidos — afirmou.

Com a casa parcialmente atingida, Fronchetti ajudou os vizinhos na limpeza quando a água baixou e criou um grupo de voluntários para resgatar e tratar animais atingidos, cerca de mil. Dono de três cães, ele ainda adotou o "Chocolate" em meio a tragédia.

— Com o tempo, o rio foi ficando assoreado, uma simples dragagem para retirar entulhos teria ajudado a evitar o desastre — lamentou.

Ele é um dos trabalhadores beneficiados pelo saque emergencial do FGTS, uma medida recorrente do governo nas calamidades. Vai receber cerca de R$ 2 mil e usar o dinheiro para dívidas contraídas com o trabalho voluntário.

— O dinheiro do FGTS ajuda, mas não resolve o problema — disse.

Em quase 10 anos, os saques do FGTS em calamidade atingiram R$ 3,7 bilhões, uma média de R$ 300 milhões ao ano. O levantamento foi feito pela Caixa a pedido do GLOBO. E os recursos efetivamente pagos para a redução de riscos de desastres pelo governo federal chegaram a aproximadamente R$ 1,1 bilhão, segundo a Consultoria de Orçamento da Câmara.

Já na área de Habitação, desde 2009, quando teve início o Minha Casa Minha Vida, foram investidos cerca de R$900 milhões em unidades para deslocar moradores de áreas de risco, totalizando aproximadamente 10,7 mil unidades habitacionais contratadas para o atendimento dessas famílias. Também abaixo do valor pago em saque-calamidade do FGTS. O dado é do Ministério das Cidades.

Um homem caminha com seus pertences por uma rua coberta de lama e detritos após passagem de ciclone em Muçum, Rio Grande do Sul — Foto: SILVIO ÁVILA/AFP

Reserva gasta pela falta de prevenção

O FGTS é uma reserva do trabalhador, para quem é funcionário pelo regime CLT, dinheiro que vem do próprio salário, descontado em folha de pagamento e administrado pela Caixa. A poupança de uma vida de serviços prestados acaba sendo utilizada para remediar consequências de um desastre que não foi culpa do trabalhador.

— Muitas vezes a calamidade tem origem na falta de prevenção, uma responsabilidade do governo. E ainda assim ele autoriza o saque do FGTS, um recurso do trabalhador para tentar consertar o erro dele — disse Maria Henriqueta Arantes, integrante do grupo técnico de apoio ao FGTS.

O saque calamidade do FGTS é uma modalidade em que o trabalhador tem direito a sacar o saldo da conta do por necessidade pessoal, urgente e grave decorrente de desastre natural que tenha atingido a sua área de residência, de acordo com o governo. O valor só é liberado quando a situação de emergência ou​ o estado de calamidade pública tenha sido decretado. Para fins de saque, considera-se desastre natural eventos como enchentes, enxurradas, alagamentos, vendavais e desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens.

"Moradia é necessidade número um"

A professora da USP, urbanista e arquiteta Ermínia Maricato afirma que o sofrimento dos moradores em área de risco se repete todos os anos porque falta uma política efetiva dos governos. Para ela, o problema não é falta de conhecimento — há uma gama de estudos de especialistas e acadêmicos sobre como enfrentar o problema com medidas, como mapeamento de áreas de risco, projetos de prevenção e urbanização de favelas.

— Não falta lei e nem plano. Falta uma correlação de forças que faça com que a gente possa de fato enfrentar as desigualdades. A moradia é a necessidade número um das famílias — destacou Maricato.

A vendedora Cristine Balestro, de 46 anos, moradora de Roca Sales (RS), outro município afetado pelas chuvas, conta que não teve tempo de tirar as coisas de casa. Ela e a mãe de 84 anos perderam tudo na casa, invadida pelas águas lamacentas. Ficaram apenas com a roupa do corpo. Ela também vai poder sacar R$ 1,1 mil do FGTS.

— É insuficiente. Vamos ter que reconstruir a casa. Só piso e mão-de-obra vão ficar em R$ 12 mil — destacou.

O governo federal vem trabalhando na montagem do chamado Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, a promessa de um sistema integrado que deve apresentar o mapeamento de todas as áreas de risco no país e, em seguida, indicar soluções para cada órgão responsável por prevenir a população de situações vulneráveis a tragédias.

— Essa construção do plano tem o objetivo de reduzir os riscos de desastres, com a organização dos esforços dos governos federal, estaduais e municipais, da sociedade e empresas privadas. É uma junção transversal e de políticas setoriais. Com isso, podemos diminuir os desastres e diminuir a necessidade da população sacar seu FGTS — diz Karine Lopes, diretora de Articulação e Gestão da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, do Ministério da Integração e Defesa Civil.

Para além da Defesa Civil, a medida pretende indicar as responsabilidades de áreas como habitação e assistência social.

— Vamos ter um cenário de possíveis desastres para curto, médio e longo prazo. Esse produto está em desenvolvimento. Ele vai usar a base de dados de ocorrências de desastres e os dados do INPE, que traz as mudanças climáticas — afirmou Karine Lopes.

O sistema é desenvolvido pelo geólogo e professor da Uerj Francisco Dourado, que explica que até 11 ameaças podem ser monitoradas pela ferramenta, como: inundações, enxurradas, alagamentos, secas, estiagem, incêndio e movimentos de massa (deslizamentos de terra).

— A gente tem na região Sudeste uma tendência de continuarmos com inundações e secas no Nordeste. Serão utilizados três índices para classificar as áreas de risco: o de mudanças climáticas, do Inpe; o Índice de Capacidade Municipal, que mede as possibilidades de um município de enfrentar os desastres; e o Índice de Risco Qualitativo, que prevê chances de mortes, impactos sociais e financeiros.

A previsão é que o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil esteja pronto para a divulgação no primeiro semestre de 2024.

O Ministério das Cidades disse, em nota, que o enfrentamento e mitigação de desastres naturais é um tema prioritário para o atual governo, que destinou R$ 766,5 milhões para essas ações, em contraste com o governo anterior, que reservou apenas R$ 25 mil no orçamento para o tema em 2023. No Novo PAC, o Ministério das Cidades destinou R$14,9 bilhões para prevenção de riscos e desastres em todo o Brasil.


Fonte: O GLOBO