Ao assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR) na última segunda-feira, Paulo Gonet disse que não busca “palco nem holofotes” e afirmou que deverá manter o Ministério Público na defesa da democracia e da Constituição.

Seu principal desafio no comando da instituição, porém, não tem relação com nenhum dos pontos mencionados no discurso de posse.

Apoiado pelos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes em suas pretensões de chefiar o Ministério Público Federal, Gonet vai ter de lidar com processos de grande interesse público e repercussão que vão testar o tamanho de seu alinhamento com o Supremo Tribunal Federal (STF) e com Moraes em particular – e até onde ele está disposto a ir em assuntos que opõem o MP e o tribunal.

É o caso da delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e dos inquéritos que investigam o ex-presidente Jair Bolsonaro no STF, como o das milionárias joias sauditas, a fraude na carteira de vacinação de Covid-19 e a organização dos atos antidemocráticos que culminaram com a invasão e a depredação da sede dos três poderes.

Todos esses casos que podem selar a sobrevivência política de Bolsonaro estão nas mãos de Moraes e já provocaram alguns ruídos entre a PGR e o Supremo.

Em novembro, a delação de Mauro Cid foi chamada de “fraca” pelo subprocurador Carlos Frederico Santos, que cuidava do processo na PGR e entregou o cargo antes mesmo da posse de Gonet. A PGR já havia se manifestado contra o acordo do ex-ajudante de ordens.

As críticas de Frederico Santos irritaram não apenas a Polícia Federal, que fechou o acordo de colaboração premiada com a PF, mas o próprio Moraes, responsável pela decisão que validou o acordo em setembro deste ano. Agora, com a troca no comando da PGR, a expectativa é a de que Moraes e Gonet atuem mais em sintonia.

O novo procurador ainda não definiu quem vai assumir os processos de Santos, mas existe inclusive a chance de o próprio Gonet chamar para si a condução dos inquéritos, embora ele não seja um especialista em direito penal.

Caberá à equipe de Gonet decidir se denuncia ou não Bolsonaro nesses inquéritos – no caso de 8 de Janeiro, há uma apreensão entre aliados do ex-presidente de que ele seja enquadrado como autor intelectual dos protestos antidemocráticos, o que poderia pavimentar o caminho de uma prisão.

Em outra frente da investigação do 8 de Janeiro, Gonet foi cobrado por parlamentares bolsonaristas para convencer Moraes a colocar em liberdade as 66 pessoas que ainda estão encarceradas por envolvimento nos atos golpistas.

A PGR não pode, sozinha, prender ou soltar ninguém, mas é um importante instrumento de persuasão e de defesa de garantias constitucionais, na avaliação dos parlamentares.

Durante o périplo para angariar votos no Senado antes da sabatina, senadores chamaram a atenção de Gonet para a morte de Cleriston Pereira da Cunha, de 46 anos, que teve “mal súbito” durante banho de sol na Papuda.

Cunha foi preso dentro do Senado no dia 8 e denunciado por cinco crimes, mas a PGR já havia concordado com o alvará de soltura em setembro. Moraes, porém, não analisou o pedido a tempo. Após a repercussão do episódio, o ministro mandou soltar 11 presos.

Mas o caso que tem o potencial de gerar o maior foco de tensão nas relações entre Gonet e o ministro do STF é de caráter pessoal: o inquérito que investiga as agressões ao ministro e sua família no aeroporto internacional de Roma, em julho deste ano.

A apuração provocou um embate entre a PGR e o Supremo em torno justamente das prerrogativas do Ministério Público.

A gestão interina de Elizeta Ramos cobrou do relator do inquérito, Dias Toffoli, acesso à íntegra do vídeo com as cenas da briga de uma família de São Paulo com o ministro, para fazer uma cópia da gravação.

A subprocuradora Ana Borges, então número 2 de Elizeta, contestou em outubro a inclusão do próprio Moraes como assistente de acusação no inquérito – o que, na prática, permite ao ministro do STF sugerir a obtenção de provas e até realizar perguntas para as testemunhas.

Para Elizeta e Ana Borges, a inovação é um “privilégio incompatível com o princípio republicano”, que “jamais foi admitido nem mesmo para o presidente da República”. As duas assinaram juntas o recurso, para dar um peso institucional maior à posição do Ministério Público.

Assim como Carlos Frederico, Ana Borges também deixou o cargo, o que abre caminho para mudanças de rota na posição da PGR nesse caso, se Gonet quiser atender Moraes.

“É de se esperar que o novo procurador-geral da República, sem perseguições, afagos ou omissões, atue com independência na ‘defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’, como impõe a Constituição. E o Ministério Público tem assegurada pela mesma Constituição a autonomia funcional e administrativa.”, diz o advogado Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV São Paulo.

“Portanto, ele não deve ser subserviente a qualquer um dos poderes, menos ainda a quem o nomeou ou a quem apoiou a sua candidatura dentro e fora do STF. Mas isso não impede que busque reduzir os atritos com o Supremo, desde que faça isso em obediência às determinações constitucionais. Entre reduzir atritos e cumprir a Constituição, sem dúvida ele deve seguir pelo segundo caminho.”


Fonte: O GLOBO