João Batista de Couto Neto, de 47 anos, é suspeito pela morte de ao menos 42 pacientes e outros 114 casos de lesão corporal

Pacientes vítimas de negligência médica por parte do cirurgião João Batista de Couto Neto, de 47 anos, indiciado por homicídio doloso (quando há intenção de matar) no caso de três pacientes, comemoraram a prisão preventiva do suspeito após um ano de investigação. Ao GLOBO, a cabeleireira Renata Tietbohl Bastos, de 43 anos, disse ter se sentido aliviada, visto que o médico é a causa de suas cicatrizes físicas e emocionais. Em outubro do ano passado, durante uma cirurgia para retirada de vesícula, ela teve o fígado perfurado e quase sofreu uma infecção generalizada.

Moradora de Gravataí, no Rio Grande do Sul, Renata viajou 38 quilômetros até Novo Hamburgo, no dia 12 de outubro do ano passado, para retirada de vesícula que apresentava cálculos biliares. Considerada uma cirurgia simples, ela teve alta no mesmo dia. No entanto, as complicações começaram no pós-operatório: sem ter tido nenhum tipo de recomendação médica, ela conta que começou a sentir dores fortes na região abdominal, falta de ar e febre. Após realizar um exame de imagem, foi constatada uma perfuração no fígado.

— No dia da operação eu só vi o anestesista. Só vim olhar para o João Couto na segunda operação que ele fez, quando descobri que estava com o fígado vazando bile (uma secreção amarelo esverdeado produzida no fígado). Mas, até então, eu não achava que o culpado tinha sido ele, apesar de toda negligência: ele não me deu uma receita no pós-operatório e eu cheguei a sentir dores de desmaiar — relata Renata, que fez até uso de morfina, em vão.

Médico mandou paciente tirar o próprio curativo

De acordo com Renata, o cirurgião não a explicou o que teria causado a perfuração do órgão. Após realizar a segunda cirurgia e marcar um retorno com o Couto Neto para remover o dreno que estava acoplado na região do abdômen, o cirurgião não compareceu na consulta e a orientou, por mensagem, como ela mesma poderia fazer a remoção.

— Eu lembro que quando ainda estava no hospital, precisei fazer uso de bolsa de colostomia e ele, com toda a brutalidade, retirou o curativo com força e voou líquido nele e na minha filha, de 11 anos, que estava do lado. Depois de uns dias, por ele não ter comparecido ao consultório para retirar meu dreno, eu mandei uma mensagem para ele e ele mandou eu mesma tirar os pontos. Eu vi estrela de tanta dor. Ele me mutilou e não prestou nenhuma assistência — conta a vítima, que hoje faz acompanhamento psicológico para lidar com o trauma.

Renata Bastos precisou usar dreno após perfuração no fígado — Foto: Arquivo pessoal

Em dezembro do ano passado, quando decidiu prestar queixa contra o médico, Renata descobriu que ele atestou no prontuário hospitalar que, além da retirada da vesícula, teria feito uma cirurgia de hérnia na paciente. No entanto, a cabeleireira diz nunca ter apresentado esse tipo de problema de saúde.

Preso por homicídio doloso

O mandado de prisão preventiva foi expedido na quarta-feira pelo juiz Guilherme Machado da Silva, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O médico foi indiciado por homicídio doloso — quando há intenção de matar — pela Delegacia de Novo Hamburgo, com base na conclusão de três inquéritos. A polícia suspeita que, ao todo, ele possa estar por trás de pelo menos 42 mortes de pacientes e outros 114 casos de lesão corporal.

Há 1 ano, no dia 12 de dezembro de 2022, quando foi afastado por 180 dias das mesas de cirurgia por decisão da Justiça gaúcha, o cirurgião comentou sobre a marca de "mais de 20 mil cirurgias realizadas" e exaltou o exercício da Medicina.

Entre os ex-pacientes identificados pela Polícia Civil, 18 faleceram — Foto: Reprodução / Rede Social

Já sem restrição, em fevereiro deste ano, Couto Neto se registrou no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). Na ocasião, o Cremesp confirmou estar ciente de que o médico enfrentava uma suspensão em sua licença, mas que "é obrigado a efetuar o registro do médico" por se tratar de uma restrição parcial. Desde então, ele realizava atendimentos no estado.

Em contato com O GLOBO, o advogado de Couto Neto, Brunno de Lia Pires, criticou a prisão.

— Com surpresa a defesa recebeu a notícia da decretação da prisão preventiva do médico João Batista. A decisão não se reveste de qualquer fundamento fático ou jurídico e constitui clara antecipação de pena, com a finalidade de coagir e constranger o médico — disse, acrescentando ainda que entrará com um pedido de habeas corpus "o mais breve possível, para fazer cessar a absurda e imotivada prisão".Em contato com O GLOBO, o advogado de Couto Neto, Brunno de Lia Pires, criticou a prisão.

Professora desenvolveu 4 tumores

Outra paciente operada pelo cirurgião que teve consequências para toda a vida é a professora Aida Saádeh, de 50 anos. Em entrevista ao GLOBO, ela relatou ter sido vitimada pelo cirurgião em 2016, quando o procurou para realizar uma videolaparoscopia — procedimento realizado com o auxílio de uma câmera, que é introduzida através da parede abdominal. A negligência de Couto Neto, segundo a professora, resultou em quatro tumores neuroendócrino pancreático, que só foram descobertos em 2021. Aida denunciou o médico à polícia do Rio Grande do Sul em dezembro do ano passado.

Aida Saádeh, de 50 anos, relatou ter sido vitimada pelo cirurgião João Couto Neto em 2016 — Foto: Reprodução

A cirurgia com Couto Neto foi indicada por um antigo gastroenterologista da confiança de Aida. A indicação era que o cirurgião realizasse o procedimento para retirar e identificar a causa do surgimento dos quatro nódulos na região abdominal. No entanto, Aida relata que, apesar de o médico ter realizado cortes na região da barriga, nenhum nódulo foi retirado.

— Eu fui ao médico porque tive um agravo no quadro de gastrite, que virou úlcera. Exames prévios mostraram a presença de quatro nódulos e o gastroenterologista me indicou o João. Ele aceitou fazer a cirurgia, mas em momento algum perguntou sobre as dores que eu sentia ou pediu mais exames para uma cirurgia mais precisa — relata a professora.

Câncer em estágio de metástase

Após passar pela videolaparoscopia, a professora realizou novos exames, que constataram que nenhum dos nódulos haviam sido retirados. A descoberta tardia, já em estágio de metástase, aconteceu pela característica da doença, de ser assintomática.

— A grande dúvida que eu tenho é o que ele fez comigo, porque eu fui anestesiada, tenho cicatrizes, mas não foi retirado nada de mim. Exames posteriores provam isso. Inclusive não foi feita a biópsia para saber do que se tratavam os nódulos. Depois, quando o questionei, ele disse que eu tinha apenas camadas de endométrio e um nódulo dentro do pâncreas, quando, na verdade, eu ainda estava com os quatro caroços e nenhum dentro do pâncreas — afirma.

O tumor neuroendócrino pancreático que acometeu Aida é um tipo raro de câncer, responsável por 5% dos casos da doença. Ele se desenvolve a partir de células endócrinas do pâncreas, que passam a produzir hormônios de forma irregular.

Alto risco de óbito

Em cirurgias realizadas este ano, a professora tirou parte do intestino e estômago, e os quatro nódulos. Na última, ela ficou 32 dias internada, contraiu infecção hospitalar e precisou fazer hemodiálise. Já sofrendo de transtorno bipolar, Aida teve ainda que lidar com a depressão acarretada pela negligência.

— Fiz 3 cirurgias a céu aberto, entre fevereiro de 2022 e maio de 2023. Tirei cabeça do pâncreas, boa parte do estômago, o duodeno e mais parte outra do intestino delgado, a vesícula biliar, em seis horas de cirurgia com algo risco de óbito. O meu problema poderia ter sido resolvido em 2016. Agora eu tenho que fazer tratamento para o resto da vida. Eu só quero justiça, que o diploma dele seja cassado e ele continue preso e seja responsabilizado pelos crimes — afirma Aida.


Fonte: O GLOBO