Até mesmo os telescópios mais potentes estão em perigo; maior parte dessas construções são de projeto da SpaceX para transmitir serviço de internet

Em 2020, astrônomos documentaram uma explosão de luz altamente energética em uma das galáxias mais distantes já observadas. Menos de um ano depois, no entanto, as alegações do artigo ficaram em suspenso. Outros cientistas afirmaram que se tratava apenas de um satélite. Depois disso, Krzysztof Kamiński, astrônomo do Instituto Observatório Astronômico da Polônia que identificou a posição, disse que ficou “triste” por descobrir que “o sinal de raio gama era um satélite artificial”.

Linhua Jiang, astrônomo da Universidade de Pequim que liderou a descoberta, disse que sua equipe sustenta o trabalho original. Ele acrescentou que a probabilidade de um satélite passar diretamente à frente da distante galáxia no momento exato era ínfima, na melhor das hipóteses. Na medida em que as órbitas da Terra se preenchem com satélites em um ritmo surpreendente, esta provavelmente não será a última vez que os cientistas debaterão se um satélite está sendo confundido com uma descoberta astronômica.

Hoje, já existem mais de 9 mil satélites orbitando o planeta, e mais de 5 mil deles pertencem à Starlink, projeto da SpaceX para transmitir serviço de internet para a Terra. Nas próximas décadas, eles serão acompanhados por milhares de satélites de outras empresas e países.

Astrônomos não querem ceder

A SpaceX não respondeu aos pedidos de comentário. Mas astrônomos no solo afirmaram que não estão prontos para ceder os céus noturnos para outros satélites. Eles estão combinando tecnologias novas e antigas com engenhosidade para lidar com os crescentes obstáculos às suas observações. Também estão trabalhando com a indústria para encontrar soluções para escurecer os satélites, e tentam persuadir os reguladores a prestar mais atenção no setor de satélites em expansão.

As estratégias estão funcionando, ao menos por enquanto. Mas a busca dos pesquisadores para preservar o poder da astronomia enfrenta desvantagens. Pode levar décadas para construí-los, enquanto dezenas de novos satélites podem ser adicionados aos céus noturnos a cada semana. “Os prazos são muito desiguais”, avaliou Meredith Rawls, cientista do Observatório Vera C. Rubin, um poderoso telescópio financiado pelos Estados Unidos no Chile e que entrará em operação em 2025.

'Janela para o universo'

Para fotografar o céu noturno, os operadores de telescópios capturavam imagens em placas de vidro. Isso começou a mudar com o surgimento dos detectores de dispositivos de carga acoplada (CCDs, na sigla em inglês). Inventados em 1969, os CCDs são digitais e capturam imagens cerca de 100 vezes mais rápido que as câmeras de filme. Na década de 1980, surgiram alguns dos primeiros telescópios com “olhos” eletrônicos de CCD. Hoje, eles continuam a depender desta tecnologia.

Embora os CCDs não sejam a tecnologia de câmera mais rápida disponível atualmente, são os mais comuns. Também leva décadas para construir os observatórios terrestres mais poderosos, e muitos foram projetados com níveis de técnicas de imagem do século XX em mente. Isso inclui o Observatório Vera Rubin, nomeado em homenagem a uma astrônoma que teve um papel central na descoberta da matéria escura. Sua missão inclui detectar asteroides que podem destruir planetas.

O telescópio depende de um gigantesco detector de CCD que tem o mesmo tamanho de um carro médio, mas é muito mais pesado. É a maior câmera digital astronômica já construída. Capturando uma ampla área do céu, deveria esquadrinhar os mistérios de objetos 20 milhões de vezes mais fracos do que o olho humano pode ver. Mas à medida que os satélites preenchem os céus, os astrônomos que planejavam contar com o telescópio Rubin para descobertas científicas estão preocupados.

— Todo o ponto do Rubin é abrir esta nova janela para o universo para encontrar coisas que nem sabíamos procurar — disse Rawls. — E se, em vez disso, estivermos olhando através do equivalente a um para-brisa cheio de insetos, você não sabe o que não vai ver.

Desvio e correção

Alguns telescópios que usam detectores de CCD estudam uma fatia tão estreita do céu que os satélites podem não interferir neles. Mas a ampla visão do telescópio Rubin apresenta problemas. Um estudo mostrou que, durante certas horas da noite, quase todas as imagens tiradas por ele são prejudicadas por pelo menos um satélite. Rawls destacou duas estratégias para lidar com essa ameaça: desvio e correção.

Se os astrônomos conhecem os caminhos dos satélites com antecedência, a tecnologia pode antecipá-los e “desviá-los” temporariamente. O desvio, afirmou, deve remover cerca de metade dos rastros do telescópio Vera Rubin, dependendo de quantos satélites estão em órbita. Já para a estratégia de correção, ela afirmou que os cientistas estão desenvolvendo algoritmos para limpar os satélites dos dados — tarefa mais desafiadora.

Darren DePoy, um astrônomo da Universidade do Texas A&M, esteve envolvido com alguns dos primeiros telescópios na década de 1980. Em 2018, ele começou a eventualmente usar um detector mais comum: CMOS, sigla para semicondutor de óxido de metal complementar, o mesmo tipo que provavelmente está na câmera do seu smartphone.

— Embora a física seja muito semelhante para ambos os detectores, a maneira como você obtém o sinal é diferente. Para CMOS, você pode ler todos os pixels simultaneamente, enquanto para o CCD, é preciso esperar para ler cada pixel sequencialmente — disse DePoy, explicando que o CMOS equivalente a um CCD moderno é cerca de mil vezes mais rápido.

‘A inércia é mais barata’

DePoy afirmou que os pequenos detectores CMOS já são populares entre os astrônomos amadores, e que é difícil imaginar que esta tecnologia não seja o futuro para o setor. Por enquanto, porém, ele estimou que menos de dez telescópios maiores usem essa tecnologia. Parte da aceitação lenta se deve ao fato de que a inércia é mais barata, opinou Richard Green, astrônomo da Universidade do Arizona.

O governo dos Estados Unidos está promovendo a comercialização do espaço e patrocinando telescópios como o Observatório Rubin. Por esse motivo, Green disse que cabe ao governo lidar com os efeitos na astronomia, talvez cobrando das empresas o pagamento de atualizações nos telescópios. Até agora, porém, medidas para compelir os operadores de satélite a ajudar ainda não foram tomadas. Mas algumas empresas estão tentando resolver aspectos do problema.

A SpaceX se recusou a comentar quando perguntada sobre o trabalho da empresa para reduzir os efeitos de seus satélites na ciência. Mas astrônomos familiarizados com seus esforços descreveram parte do trabalho. Quando o fundador da SpaceX, Elon Musk, enfrentou críticas em 2019 após o lançamento dos primeiros satélites Starlink, ele disse no X (antigo Twitter) que havia “enviado uma nota” aos engenheiros.

Tentativas de reparos

A primeira tentativa envolveu um revestimento que absorve luz e escurece os satélites. Um protótipo chamado DarkSat foi lançado em 2020, de acordo com Jonathan McDowell, um astrônomo do Centro Harvard-Smithsonian de Astrofísica. O problema, explicou, foi que o equipamento interno superaqueceu, e o satélite falhou.

Ele afirmou que o próximo passo da SpaceX seria instalar sombras sobre seus satélites, ideia que foi rapidamente descartada porque elas não só faziam pouco para escurecer o satélite, mas também bloqueavam as interconexões a laser que a empresa estava desenvolvendo para permitir que seus satélites se comunicassem entre si.

A tentativa mais recente da empresa envolveu um revestimento de filme dielétrico, e isso tornou os satélites mais brilhantes. Mas, em vez de refletir a luz solar para a superfície da Terra, o material a devolvia ao espaço, diminuindo a intensidade de qualquer rastro. A SpaceX disse que compartilharia os revestimentos com outros fabricantes de satélites.

Durante as cruciais horas do crepúsculo, quando muitas observações astronômicas ocorrem, a SpaceX também começou a girar seus satélites para apontar seus painéis solares para longe da Terra. Para compensar a perda de energia solar, aumentou o tamanho dos painéis solares dos satélites, um gasto adicional. Em estudo que ainda não passou por revisão de pares, astrônomos relataram que os satélites Starlink mais novos pareciam mais escuros devido à redução da reflexão da luz solar.

Atualmente, os satélites representam um incômodo — o que Rawls chamou de “um para-brisa cheio de insetos” —, em vez de uma verdadeira ameaça à ciência. Mas o que acontece quando o número de satélites atingir a casa dos centenas de milhares ou mais, como alguns prognósticos prevêem, com outras empresas e China, Rússia e países europeus se juntando à disputa orbital?

— É ótimo falar sobre mitigação — disse McDowell — Mas chega um ponto em que nada realmente ajuda, então acho que você precisa de uma restrição no número de satélites a longo prazo.


Fonte: O GLOBO