Comitê Internacional da Cruz Vermelha diz que há 4 mil casos de palestinos desaparecidos, dos quais, estima, ao menos metade tenha sido detida por Israel

Quase nu e no frio, Ayman Lubbad estava cercado por soldados israelenses com fuzis de assalto M16 quando se ajoelhou entre dezenas de homens e meninos palestinos que haviam sido expulsos de suas casas na Faixa de Gaza. Era início de dezembro, e imagens da época o mostravam, juntamente com os outros detentos, apenas com roupas íntimas e enfileirados. A cena não é isolada. 

Presos palestinos têm sido despidos, espancados, interrogados e mantidos incomunicáveis nos últimos três meses, de acordo com relatos de dezenas de detentos ou seus parentes ao New York Times.

Organizações que representam os detentos também deram depoimentos semelhantes e acusaram Israel de prender civis indiscriminadamente. Desde o ataque liderado pelo Hamas em 7 de outubro, forças israelenses que invadiram Gaza têm prendido milhares de homens, mulheres e menores. 

Alguns foram ordenados a sair de suas casas e detidos; outros, capturados enquanto fugiam a pé de seus bairros com suas famílias, tentando alcançar áreas mais seguras depois de Israel ordenar sua retirada.

Imagens registradas por jornalistas do enclave mostram detentos soltos recentemente sendo tratados em hospitais. A pele ao redor dos pulsos aparece com cortes profundos por causa de algemas ou cordas de contenção mantidas às vezes por semanas. Na última sexta-feira, o escritório de direitos humanos das Nações Unidas disse que o tratamento de Israel aos detentos em Gaza poderia configurar tortura.

Palestino preso por israelenses para interrogatório recebe atendimento médico em Gaza — Foto: AFP

‘Bárbaro e sem precedentes’

A organização estimou que milhares ficaram detidos em condições “horríveis”, às vezes sem nenhuma roupa, apenas com fraldas. Ao Times, o Exército israelense afirmou que detém suspeitos de envolvimento em atividades terroristas e liberta os que passam na verificação. Afirmou que as autoridades de Israel tratam os detentos de acordo com o direito internacional e defendeu o ato de obrigar homens e menores a se despir, afirmando que isso é feito para “garantir que não estão escondendo coletes explosivos ou outras armas”.

Defensores dos direitos humanos, porém, afirmam que a detenção e o tratamento humilhante de palestinos por Israel no enclave podem violar as leis internacionais de guerra. “Desde o início do bombardeio israelense e da invasão terrestre em Gaza, o Exército israelense prendeu centenas de palestinos de maneira bárbara e sem precedentes e publicou fotos e vídeos mostrando o tratamento desumano dos detentos”, afirmou um relatório recente de vários grupos de direitos palestinos, incluindo a Comissão de Prisioneiros Palestinos e a Addameer.

Após ser solto por Israel, homem recebe tratamento médico em Gaza — Foto: AFP

Hisham Mhanna, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, disse que sua organização diariamente recebe relatos de famílias em Gaza sobre parentes que foram presos. Hoje, a instituição lida com 4 mil casos de palestinos que desapareceram. Destes, é estimado que pelo menos metade tenha sido detida por Israel. O grupo tem buscado informações sobre as condições e o paradeiro dos detentos. No entanto, em apenas alguns casos foi recebida alguma prova de vida.

‘Ações preocupantes’

Antes da guerra, estimava-se que o Hamas tivesse de 20 mil a 40 mil combatentes, conforme analistas americanos, em uma população de mais de 2 milhões de pessoas no enclave. Durante o primeiro mês da guerra, Israel alertou que aqueles que não fugiram de áreas sob ordens de retirada “podem ser considerados parceiros de uma organização terrorista”. Já em dezembro, o país passou a deter “homens em idade militar” nessas áreas, segundo um porta-voz do governo israelense.

Para Brian Finucane, analista do Grupo de Crise Internacional e ex-conselheiro jurídico do Departamento de Estado, a presunção de que homens em idade militar são membros do Hamas é “preocupante”. 

Ele ressaltou que o direito internacional estabelece um “padrão muito elevado” para detenção de não combatentes e exige que sejam “tratados de maneira humana”. Já Francesca Albanese, relatora especial da ONU, afirmou que considerar civis que não cumpriram ordens de retirada como como cúmplices do terrorismo pode constituir limpeza étnica.

Fotos e vídeos feitos por soldados e jornalistas israelenses mostraram palestinos com as mãos amarradas atrás das costas, algumas vezes vendados e de roupas íntimas, ajoelhados ao ar livre no inverno. Em um dos registros, gravado num estádio na Cidade de Gaza, dezenas de homens seminus enfileirados marchavam cercados por soldados de Israel. Alguns dos homens eram grisalhos, e vários eram menores. Mulheres e meninas também estavam presentes, mas permaneceram vestidas.

‘Eles batiam em nossas cabeças’

Uma das detentas era Hadeel al-Dahdouh, 22, que apareceu em outra foto publicada em dezembro. Ela estava em uma caminhonete lotada de homens quase nus. Na imagem, seus olhos estavam cobertos por uma venda branca, e seu lenço de cabeça havia sido removido. Ao lado do marido, Rushdi al-Thata, 31, a jovem foi levada em 5 de novembro. Ele foi libertado após 25 dias, mas al-Dahdouh está desaparecida.

— Eles batiam em nossas cabeças com as armas — afirmou al-Thata, que disse ter sido espancado pelos soldados israelenses. — Batiam na minha esposa como batiam em mim. Gritavam para que calasse a boca e a xingavam.

Quando foi detido, em 7 de dezembro, Lubbad estava na casa dos pais com a esposa, que havia dado à luz ao terceiro filho deles algumas semanas antes. Eles ouviram tiros e tanques nas ruas antes de um soldado israelense exigir aos gritos por um megafone que todos os homens se rendessem. Assim que saiu com os braços erguidos, um soldado ordenou que se ajoelhasse e se despisse. No frio, ele ficou de joelhos na última fileira de homens e menores palestinos, todos de roupa íntima e alguns descalços.

Agressão e interrogatório

Lubbad, que é um ativista no Centro Palestino de Direitos Humanos, contou que sua detenção durou uma semana. Nos primeiros momentos, disse a si mesmo que faria o que lhe mandassem. Suas mãos foram amarradas com uma corda que começou a cortar sua pele imediatamente. Os presos foram vendados e agredidos por soldados, colocados em caminhões e conduzidos até Israel. Somente quando chegaram a uma prisão é que receberam roupas. A cada um foi dada uma etiqueta azul com um número.

Das 5h à meia-noite, todos os presos eram forçados a ficar de joelhos em uma posição que ele descreveu como agonizante. Quem tentasse se mover era punido, afirmou. Lubbad passou dias sem ser interrogado. Depois, foi levado para outra instalação em Jerusalém. Lá, o interrogador perguntou onde estava em 7 de outubro e se tinha alguma informação sobre os membros do Hamas, grupo que controla Gaza, ou a Jihad Islâmica, uma facção armada menor. Perguntaram, ainda, sobre os túneis e posições do Hamas.

Quando ele repetidamente respondeu que não sabia de nada e que passava a maior parte do tempo no trabalho ou em casa, o interrogador ficou irritado e o acertou abaixo do olho, disse. Depois, colocou sua venda de volta — amarrando-a de maneira dolorosamente apertada. Ele ficou detido por mais alguns dias, mas não foi interrogado novamente. Em 14 de dezembro, Lubbad estava entre os detentos levados de ônibus até a fronteira sul de Gaza. Lá, foi ordenado a começar a andar.

‘Corremos sem olhar para trás’

Majdi al-Darini, 50 anos, pai de quatro filhos e ex-funcionário público aposentado, disse que ficou detido por 40 dias com as mãos quase sempre amarradas. A corda cortou seus pulsos, deixando feridas que eventualmente ficaram infectadas. Um vídeo de al-Darini depois de ser libertado mostra crostas ao redor de seus pulsos. Ele disse que, “a todo tempo, suas mãos estavam amarradas, seus olhos vendados e de joelhos”, sem poder se mover.

Al-Thata, o homem que foi detido com sua esposa, disse que, após 25 dias de tormento, um guarda da prisão perguntou se ele conseguia correr. Horas mais tarde, por volta das 2h, seu nome foi chamado e ele foi colocado em um ônibus que seguiu até a fronteira de Israel e Gaza. Ao descer do veículo, um soldado alertou que havia um atirador de elite observando e ordenou que corressem por 10 minutos.

— Corremos por 10 minutos sem olhar para trás — disse ele.


Fonte: O GLOBO