Parecer dos Direitos Humanos considerou inconstitucional eximir igreja de protocolo para proteger mulheres, mas Planalto sancionou texto na íntegra
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ignorou um parecer do Ministério dos Direitos Humanos que recomendava o veto a um trecho da lei do “Não é Não” que desobriga cultos e “locais de natureza religiosa” de cumprir protocolo previsto na nova legislação para coibir violência contra mulheres.
O parágrafo único do artigo 2º da lei sancionada na última quinta-feira (28) e publicada no dia seguinte no Diário Oficial da União diz que ela "não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa". Sua aprovação na íntegra livrou o Palácio do Planalto de um confronto com a bancada evangélica, mas tem sido alvo de críticas da base progressista nos últimos dias.
O texto, aprovado pelo Congresso em 6 de dezembro, foi uma iniciativa da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) proposta depois que o jogador Daniel Alves foi preso, acusado de estuprar uma mulher de 23 anos em uma boate na Espanha.
A ideia era adaptar no Brasil o protocolo usado no país europeu que permitiu a prisão do atleta. A lei prevê uma série de medidas que vão desde a criação de um código próprio para clientes mulheres sinalizarem a funcionários que precisam de ajuda até o afastamento da vítima de seu agressor, inclusive de seu campo visual.
A exclusão das igrejas não constava do texto original e foi incluída durante a tramitação na Câmara dos Deputados pela relatora da proposta, Renata Abreu (Podemos-SP).
A menção expressa a locais religiosos chamou atenção da militância de esquerda e de integrantes do próprio governo, que enxergaram uma espécie de salvo conduto para o assédio nestes ambientes.
Defensores do projeto no Congresso, porém, dizem que a exclusão visa reforçar o objetivo da legislação, que é estabelecer um protocolo de prevenção a episódios de violência e constrangimentos contra mulheres em “casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica”.
Segundo apurou a equipe do blog, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, recomendou à Presidência da República vetar esse trecho específico por considerar inconstitucional excluir da proteção da legislação mulheres que frequentam igrejas e templos religiosos.
Para o ministério, a liberdade religiosa tem que ser interpretada de modo compatível com os demais direitos e garantias fundamentais, ou seja, o combate ao assédio contra mulheres também deveria incluir os locais de pregação de padres e pastores.
Venceu, porém, a posição da Secretaria de Relações Institucionais, do ministro Alexandre Padilha, junto com Maria do Rosário, que já tinha feito um acordo na Câmara para excluir da lei os locais religiosos. A deputada afirma que o trecho foi uma exigência da bancada evangélica para que o projeto tramitasse, sob ameaça de derrubá-lo por completo.
Isso porque, na avaliação do segmento, a redação original poderia representar uma interferência do Estado sobre eventos de cunho religioso – como quermesses, procissões, festas de igrejas de diferentes denominações e templos de outros credos. Para a parlamentar gaúcha, mesmo com a exclusão, a aprovação do projeto representa um avanço.
“Esse dispositivo não invalida a lei, que é uma conquista. O objetivo desde o início era promover a fiscalização nos ambientes de lazer e diversão. Muitos outros estão fora desse escopo, como transportes, locais de trabalho e de natureza educacional, por exemplo. Mas isso não significa que nesses lugares onde não existe um protocolo firmado nos mesmos termos haja uma liberação para a violência ocorrer. É um absurdo terem dito isso”, declarou Maria do Rosário à equipe do blog.
Prevaleceu ainda o entendimento de que um veto de Lula fatalmente seria derrubado no Congresso pela frente parlamentar evangélica, muito provavelmente com o apoio da bancada do agronegócio – o projeto foi aprovado por unanimidade na Câmara.
A Presidência, então, decidiu não mexer nesse vespeiro, mas o Ministério dos Direitos Humanos não assinou a nova legislação. Além de Lula, a lei 14.786 de 2023 é assinada pelas ministras Cida Gonçalves (Mulheres) e Nísia Trindade (Saúde), pelo ministro Camilo Santana (Educação) e pelo secretário-executivo Ricardo Cappelli (Justiça).
A sanção integral pelo petista foi alvo de críticas públicas da militância progressista. Na última terça-feira (3), a ex-candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad (PT) em 2018, Manuela D’Ávila (PCdoB), lamentou a permanência do trecho polêmico.
“Não é não em qualquer lugar!”, postou ela para seus 2,1 milhões de seguidores. “Não é possível que autoridades religiosas sérias não se revoltem com esse texto que afirma que mulheres podem ser vítimas de violência em suas dependências”.
A manutenção do parágrafo único também foi criticada nas redes sociais por Marcia Tiburi, que disputou o governo do Rio pelo PT em 2018 e cobrou da primeira-dama Janja da Silva um posicionamento sobre a lei.
“Talvez o presidente Lula tenha caído numa armadilha – e com isso colocou Janja, a primeira-dama que, ao se declarar feminista assume as implicações dessa posição, também numa armadilha”, escreveu Márcia.
“Janja, com seu acesso privilegiado a esse homem, seu marido, como ela gosta de declarar com graça, poderia usar sua posição de primeira-dama para esclarecer o presidente sobre o problema da lei que está valendo nos bares, nos lugares de diversão, mas não nas igrejas”.
Em meio à repercussão, a autora da proposta, Maria do Rosário, afirmou à equipe do blog que estuda a elaboração de um projeto de lei, a ser apresentado após o recesso parlamentar, para estabelecer como um agravante o uso da religião na legislação vigente sobre assédio – neste caso, vinculado ao poder religioso e psicológico.
A deputada gaúcha também se disse “decepcionada” pela postura de colegas “do mesmo campo político” e ressaltou não ter sido procurada por lideranças femininas durante a tramitação do projeto, ou seja, antes e após as alterações por pressão das alas conservadoras
“São discursos horríveis os das minhas amigas Márcia Tiburi e Manuela D’Ávila. Nenhuma delas me procurou para apoiar a matéria anteriormente. Se dependesse de mim, não colocaria o parágrafo único”, declarou. “Fiquei muito decepcionada com os discursos de algumas mulheres que respeito muito. Mas, sinceramente, elas não estão inseridas na vida prática das mulheres brasileiras para entender como elas foram beneficiadas”.
As críticas não se limitaram à esquerda. A relatora do texto na Comissão de Direitos Humanos do Senado, Mara Gabrilli (PSD-SP), também foi contra a exclusão de cultos e templos.
“Seu âmbito de aplicação é mais limitado do que o de outras proposições, chegando a excluir, expressamente, cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa, o que não seria prudente admitir, já que a violência é reprovável também nesses contextos”, escreveu Mara.
Quando o projeto chegou ao plenário do Senado, porém, uma outra relatora, a petista Augusta Brito (CE), não fez nenhuma objeção. O trecho foi mantido e acabou aprovado sem maiores resistências.
Nós questionamos o governo federal sobre a sanção integral do projeto e os questionamentos da militância. A Secretaria de Comunicação Social (Secom) repassou a incumbência para a Secretaria de Relações Institucionais, que informou que não se pronunciará sobre a questão.
Já o Ministério das Mulheres exaltou a articulação da bancada feminina no Congresso e defendeu a lei como um “passo importante para o combate e prevenção à violência contra mulheres em bares, casas noturnas, boates e shows”.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a pasta afirma que “em hipótese alguma a Lei nº 14.786 autoriza a prática de violência de gênero em espaços religiosos — ‘não é não’ em todos os espaços da sociedade brasileira. A nova lei não revoga artigos do Código Penal, mas sim, cria um protocolo específico para casas noturnas e bares”.
Defensores da redação final do projeto no Congresso seguem na mesma toada do ministério de Cida Gonçalves e da autora do projeto.
Parlamentares à esquerda e à direita comemoraram a aprovação, como como Tabata Amaral (PSB-SP) e Carla Zambelli (PL-SP), além de deputados do PT, PL e Novo, que mencionaram a postura “conciliatória” de Renata Abreu na elaboração do relatório.
Questionada, a parlamentar defendeu o texto final.
"O espírito da lei é garantir a segurança da mulher em situação de vulnerabilidade especialmente nos momentos de diversão, justamente onde se concentra a maior parte das denúncias em relação a assédios contra mulheres”, afirmou Renata Abreu por meio de sua assessoria.
“O dispositivo em questão esclarece e evita qualquer questionamento jurídico que pudesse ocorrer no futuro acerca dos ambientes religiosos”, argumenta a deputada.
De toda maneira, a polêmica em torno da exclusão transformou uma agenda potencialmente positiva para o governo Lula em vidraça – ao menos entre a militância de esquerda.
Fonte: O GLOBO
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